sábado, 8 de janeiro de 2011

UMA LEI DEFICIENTE MENTAL




(IMAGEM DA WEB)



  Passava pouco das 20h30 desta última sexta-feira. As ruas estavam desertas, não se via vivalma. Quando saí do trabalho uma chuva persistente teimava em molhar os tolos que insistiam em desafiá-la. Como música saída de umas teclas de piano, as goteiras batiam num qualquer toldo comercial próximo e teimavam em tocar a mesma nota: “toc…toc…toc”!
Em direcção ao estacionamento, atravessei a Rua da Fornalhinha. Nos curtos vinte metros desta travessa perpendicular à Rua Eduardo Coelho, foi então que os meu olhos, como luz de farol a varrer o mar de silêncio, bateram nela. Era uma rapariga de vinte e poucos anos, de aspecto frágil, como se fosse uma andorinha, abandonada, de asas caídas, e vencida pela solidão. Estava encostada à parede e a água da chuva, como se estivesse a chicoteá-la, caía-lhe pelos cabelos desgrenhados e rosto sem brilho nem identidade. Quando passei à sua frente fitou-me intensamente. Não sei o que tinha o seu olhar. Sei apenas que andei uma dezena de passos, voltei para trás e interroguei: precisa de ajuda?
Mal acabei de pronunciar a interrogação, desmanchou-se toda em prantos de sofrimento e súplica: “preciso, sim! Estou mal, muito mal!” –ao mesmo tempo que se sentava no chão, quase no meio de uma poça de água. Não era preciso ser-se licenciado em psicologia ou psiquiatria para ver que se estava perante um quadro de profunda depressão, onde a descompensação emocional era evidente. Ali, à minha frente, estava uma jovem com a personalidade toda em pedaços e esfrangalhada. Vamos chamar-lhe Maria.
Então o que se passou, Maria? Interrogo, devagarinho, no sentido de a acalmar, e ao mesmo tempo que me sento ao lado dela, no chão.
Intervalado por gritos atrozes, começa a desenrolar o novelo que atormenta a sua alma: “eu não valho nada! Eu não presto para nada! Umas interrupções depois, como se as suas palavras saíssem em espasmos, continua, “sou estudante de Serviço Social, estou a fazer o estágio com deficientes. Não gosto daquilo… nunca pensei ser tão difícil trabalhar com pessoas diferentes. Eu já não durmo há mais de uma semana. Fui de manhã ao hospital, receitaram-me um medicamento para dormir…mas eu não consigo fechar os olhos. Eu gostava de Direito…andei em direito…fui obrigada a mudar de curso. Eu não atinei com aquilo. Os meus pais, coitados, são pessoas humildes, têm gasto muito para eu andar aqui a estudar em Coimbra. Sou dos lados de Bragança. Tenho cá um quarto e vivo com uma amiga. Eu sou uma carga para eles…eu sou uma desilusão. Eu menti à minha melhor amiga…eu fiz isto, aquilo, e aqueloutro. Fiz coisas, quando era pequena, que me envergonho…eu sou a desonra da minha família”. Entretanto tocou o seu telemóvel. Pela proximidade, ouvi que era uma mulher. Maria, completamente prostrada no chão de pedra de basalto, parecia não ter forças sequer para manter o pequeno aparelho de voz na mão. Balbuciou qualquer coisa e, dolentemente, deixou escorregar o telefone para a calçada. Perguntei-lhe se podia falar com a pessoa. Ela nem disse que sim nem que não. Do outro lado uma mulher, em choro, interrogava: “o que tens filha?”. Falei com ela e disse-lhe que a sua herdeira estava mal, mas que se tranquilizasse, não sairia dali de ao pé dela e iria pedir ajuda médica.
Liguei à Mónica, que é psicóloga e membro da equipa humanitária “ERGUE-TE”. Vieram a Martinha e o Ricardo, que são assistentes sociais, e a Paula. Maria estava prostrada ao comprido no chão, misturada em lágrimas de ansiedade que se confundiam com a chuva que caía em morrinha.
Quando se viu rodeada de mais três pessoas, o seu olhar tornou-se vidrado e ficou agressiva: “deixem-me…deixem-me!”. De repente dá um safanão e abala a correr em direcção à Loja do Cidadão. Nós, os quatro, partimos em corrida atrás dela e viemos a apanhá-la na Rua Simão de Évora. Ali já não a larguei mais. A Martinha, habituada a lidar com situações parecidas, entendeu ser melhor chamar o INEM. Veio uma ambulância dos Sapadores com dois bombeiros. Quando viu os dois soldados da paz, como se estivesse esquizofrénica ou em desconcerto bipolar comportamental, Maria, de olhos esgazeados, mas segura, disse que não ia para lado nenhum. Entretanto, tirou o casaco e as botas e ficou descalça. Neste meio tempo, chegou a sua companheira de quarto, que, aparentemente, não foi reconhecida pela “doente”.
Durante mais de um quarto de hora os dois bombeiros, por um lado, de modo amável, tentavam convencer a rapariga a entrar para a ambulância. Nós, os quatro, esforçadamente, tentávamos persuadir estes homens de que Maria estava com distúrbio de personalidade e poderia correr risco de suicídio. Perante a irredutibilidade da mulher em não seguir os conselhos, os bombeiros, chamaram a PSP. Vieram 5 agentes. Quer a Martinha, quer qualquer um de nós, tentámos por tudo que a miúda fosse conduzida ao hospital. Os cívicos argumentavam que não a podiam transportar à força. E se amanhã ela viesse a demandá-los por excesso de zelo? Poderia eu provar que Maria estava doente? Como? Seria eu médico? Só um relatório passado pelo médico de família, ou de um psiquiatra, poderia servir para o seu internamento compulsivo. Ou então alguém de família, argumentavam. “Mas o quadro de distúrbio de personalidade e de descompensação não era evidente?”, argumentava a Martinha para o chefe dos agentes. “Não, não, o que parece ser, pode não ser. Isto não é assim! A lei é a lei, não fomos nós que a fizemos, retorquia o PSP. Bem lhe tentei dizer que eu, enquanto cidadão, assumia a responsabilidade pela condução ao hospital. Não senhor, não podia ser. Então o agente chamou-me para junto do carro para me identificar.
Enquanto tomava nota dos elementos, perante 2 bombeiros e 5 polícias, Maria…fugiu descalça. Enquanto Martinha corria atrás dela, para não a perder de vista, bombeiros e polícias foram à sua vida, certamente descansados com a sua consciência de que tinham feito tudo o que esta (incompreensível) lei prescreve.
Maria, descalça e em camisola, batida pelo frio e chuva, em marcha apressada, seguida de longe por Martinha, passou em frente à 2ª esquadra, Praça da República, Universidade, e parou nas escadas da Sé Velha. Seriam 23h00. Lentamente, aproximámo-nos, e, docemente, com palavras mansas, fomo-nos chegando à rapariga. Aceitou um bolo e bebeu um chá. Estava mais calma, mas continuava a não permitir grandes avanços para ir ao médico. Cerca da meia-noite, chegaram os seus senhorios, que eram seus amigos. Conseguimos convencê-la a entrar para o carro. Durante mais de duas horas, o casal senhorio e a amiga, estiveram no hospital à espera de Maria. Quando saiu da sala de urgências, para surpresa dos presentes, Maria não foi medicada absolutamente com nenhum medicamento.
Hoje, de manhã, à espera dos pais vindos de Bragança, a menina, segundo declarações do dono da casa de hóspedes, continuava a chorar e a gritar, aninhada num canto do quarto e, mais uma vez, sem ter pregado olho durante a noite.
Se lhe acontecer alguma coisa de grave poderemos culpar a Lei? Quem é aqui o deficiente?


P.S. - Hoje, Sábado, durante a tarde, em nova consulta de urgência ao hospital, Maria ficou internada em psiquiatria.


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João Braga deixou um novo comentário na sua mensagem "UMA LEI DEFICIENTE MENTAL": 



  Há dias de sorte, e a "Maria" no meio da sua fatalidade, teve o seu. Obrigado Luís, uma vez mais, pela atenção que lhe prestaste, que não tem preço. 
No sábado, pedimos a 2 amigas da "Maria" para a levarem ao Hospital Sobral Cid, uma vez que o seu deplorável quadro psicológico se mantinha da noite anterior. Ligaram então a uma outra amiga, esta psicóloga, que a veio apoiar e as informou de que para ser vista no Sobral Cid teria que ter uma credencial dos HUC, hospital onde havia estado na véspera por duas vezes. Dirigiram-se então, desta feita, ao Hospital dos Covões, onde aí prontamente a internaram .
Bem hajam todos os que "salvaram" a "Maria" 

4 comentários:

Anónimo disse...

GRANDE LUIS FERNANDES!
GRANDE LIÇÃO DE SOLIDARIEDADE!
ESTA NOTICIA, DEVERIA SER LIDA POR MUITA BOA GENTE, COM RESPONSABILIDADES NA NOSSA CIDADE.
AINDA APARECEM PESSOAS QUE SE PREOCUPAM COM O PRÓXIMO.

João Braga disse...

Há dias de sorte e a "Maria" no meio da sua fatalidade, teve o seu. Obrigado Luís, uma vez mais pela atenção que lhe prestaste, que não tem preço.
No sábado, pedimos a 2 amigas da "Maria", para a levarem ao Hospital Sobral Cid, uma vez que o seu deplorável quadro psicológico se mantinha da noite anterior. Ligaram então a uma outra amiga, esta Psicóloga, que a veio apoiar e as informou de que para ser vista no Sobral Cid teria que ter uma credencial dos HUC, hospital onde havia estado navéspera por duas vezes. Dirigiram-se então desta feita ao Hospital dos Covões, onde aí prontamente a internaram .
Bem hajam todos os que "salvaram" a "Maria"

noname disse...

E que dia de sorte teve a "Maria" o dia de (boa)sorte para ela não será nunca um dia comum, um dia 1 ou 20, segunda ou quinta, terá para sempre um nome.. o seu.
Grata em nome de todas as "Marias"
metamorphosis

LUIS FERNANDES disse...

Obrigada, noname, mas, tenho a certeza, há algum exagero no que diz. Afinal, qual de nós não faria igual? Qualquer um. Muitas vezes, digamos que não estamos atentos, apenas isso. Calhou eu estar. Tenho a certeza de que foi mesmo um acaso. Nada mais.
Obrigado pela generosidade.