sexta-feira, 6 de agosto de 2010

UMA VOLTA AO QUARTEIRÃO...





 São 13,30 desta Sexta-feira de Agosto. O Sol está a pino na calçada. O relógio/termómetro da farmácia Universal, na Praça 8 de Maio, marca 36 graus Célsius.
O clima cálido está pachorrento, como espírito cansado que se arrasta pelas brumas do silêncio. As poucas pessoas que circulam nas ruas, procurando resguardar-se da canícula, procuram refúgio na sombra protectora dos altos edifícios. No repuxo do redondo em forma de lago da velha praça de Sanção vários miúdos, uns filhos de turistas, outros de pedintes romenos, ensaiam um banho de chuveiro.
A esplanada do café Santa Cruz está repleta de clientes, provavelmente, muitos deles, turistas de passagem por Coimbra que aproveitam para tirarem umas fotos e tomarem contacto com a vida citadina. Dentro do ancestral café o ambiente é fresco. As velhas pedras medievais, alheias ao calor que, no exterior, recai castigador sobre elas, mantém a mesma temperatura de sempre. Muitas mesas estão ocupadas maioritariamente com estrangeiros. António Costa, o simpático empregado de mesa, que nas horas vagas é pintor de artes plásticas, juntamente com o colega Luís, vai-se multiplicando em atenções. “É preciso que quem nos visita leve uma boa impressão de todos nós”, pensarão, certamente com seus botões. Este estabelecimento não é apenas uma casa que vende café, bebidas e onde se pode ouvir fado de Coimbra. É muito mais do que um centro de tertúlia: é a embaixada cultural da cidade aberta ao mundo. É um porto de abrigo onde todos os navios, pequenos médios, grandes, podem arribar.
No fundo balcão, o senhor Victor, o gerente, e um dos sócios desta catedral “cafeínica”, como contramestre a vigiar as operações de manobra dos rebocadores, está atento. Afinal estamos na época alta do turismo. Se não aproveitar agora, durante o inverno, com a chuva e frio como companhia, será mais difícil de rentabilizar este espaço de memória. Ele sabe que tem de seguir o exemplo da formiga, aproveitar para armazenar em tempo seco, porque depois, no molhado da intempérie, será mais complicado.
Apesar de ser último dia do registo do “Euromilhões” não se vê grande afluência a desafiar a sorte. Só o “Jaquim da Marta”, que trabalhou uma vida inteira numa loja de tecidos a metro, ali numa casa da Rua do Corvo, e agora está no desemprego, tenta uma jogada de cinco euros. Quem sabe, a dita, que para ele sempre foi desdita, não se vá enganar e dar-lhe uma alegria daquelas grandes?
 Em frente, sentada no patim da sapataria Renascença, a senhora Adelaide –a última tremoceira, como já a baptizei-, a coberto do fresco que sobressai da sombra, tendo ao lado uns amendoins e uns pistáchios, pouco se importa com a sorte que há-de vir aos trambolhões para alguém. Do alto dos seus 86 anos, a única coisa que pede a Deus é saúde: “mas isto vai muito mal, menino, dói-me tudo, sabe? Dói-me a espinha, tenho dores numa perna, que não me deixam carregar nada”, diz-me, no meio de um lamento, e por entre umas pregas bem vincadas no rosto sofredor.
Um pouco acima, na perfumaria Pétala, está o Armindo. Como a clientela não o maça muito, está concentrado no computador. Está a dar uma olhadela pelos blogues da cidade. Como se falasse com seus botões, se calhar, vai pensando: “vamos lá ver se estes gajos mandam alguma ferroada na APBC, Agência para a Promoção da Baixa de Coimbra” -de que é presidente, agora com uma equipa rejuvenescida. “Só sabem dizer mal…cambada de… camelos! É só bota-abaixo…”.
Como quase todos os dias, ao passar à sua porta, pergunto: “então…novidades?”. Ele vai responder: “olha…novidades! Estou cada vez mais velho!”. E eu, perdido como outros citadinos que vagueiam a esta hora, vou continuando na volta. Encontro um amigo advogado, cumprimentamo-nos, e fico a saber que está de partida para o Algarve.
Mais à frente, na soleira do antigo banco Totta e Açores, aproveitando o sombreado do velho edifício, como todos os dias, desde que nasceu o verão, quatro velhinhos –três mulheres e um homem- olham para quem passa, como se esperassem ver num rosto, subitamente aparecido, algum familiar esquecido nos confins do tempo. O homem, como que para mostrar a sua masculinidade está de peito nu. Pela cor esbranquiçada, de pele de galinha, nota-se que aquela amostra de cor desmaiada nunca apanhou sol na praia.
A esplanada do café Nicola, mesmo sem o espírito de Bocage, está bem composta de clientes. Em frente, um homem que não reconheço, está com um pequeno carro de ir às compras ao mercado. Serve-lhe de apoio para expor uns amendoins e umas pevides. Certamente a ver se ganha uns cobres, que a vida está difícil e é preciso não perder o hábito do trabalho.
No Largo da Portagem, as esplanadas estão bem ocupadas com pessoas locais e vários pontos do mundo.
Passo ao lado da loja do José Gomes. Reparo no pouco espaço que fica entre as mesas de esplanada e a sua montra, e que quem vem de longe, pelos chapéus de Sol, quase a obliteram completamente. O Gomes já fez tudo para chamar atenção da autarquia para esta violação do espaço que lhe deveria caber em frente ao seu estabelecimento mas a câmara não lhe liga. Ele sente-se sufocado. Disse-me, há pouco tempo, que um dia destes faz uma asneira das grandes. Enquanto percorro a área, em frente à loja, não deixo de pensar neste deixa-correr que mete aflição. Só quando há uma individual explosão de ira, com consequências irreversíveis, então sim, todos acordam para um problema que, se houvesse boa vontade, até seria tão fácil de resolver. Mentalmente, solto uma imprecação. Apetece-me mandar um pontapé numa pedra solta que olha para mim descaradamente.
Há uma pequena fila para registar o Totoloto em frente ao Quiosque do Sousa.
Desço as escadas do Gato, cumprimento a Anabela, da retrosaria “Zig-Zag”. Como é que vai o negócio? Interrogo. Responde lá do fundo do balcão: “está fraquito…está muito calor!”.
Atravesso a Praça do Comércio, reparo que vários automóveis, como que em provocação, estão estacionados a desafiar este histórico largo medieval, do princípio da nacionalidade, e com maior referência em feiras populares a partir da Idade Moderna.
Passo junto ao chinês mais português que a cidade tem: o “Tay-pio”. Com banca de pequenos artefactos de relojoaria na Rua Eduardo Coelho, herdou a venda do seu avô já lá vão mais de cinquenta anos. Dou-lhe uma palmada nas costas, que ele, a varrer, retira rapidamente, exclamando: “está calor!”. Sentada no degrau de pedra, como guardiã de tesouro, a sua mãe, que mal fala português: cumprimenta: “b…tarde!”.
As ruas estreitas estão silenciosas, talvez pelo soalheiro da hora, poucos transeuntes ousam desafiar o Sol. Quase junto ao Largo do Poço, um pedinte, de braço delgado, fazendo um grande esforço para parecer deficiente, proclama às poucas almas insensíveis que circulam: “dê-me um cêntimo…por favor!”…

2 comentários:

João Braga disse...

Amanhã, tem-se mais do mesmo. Agora já nem dá para ver passar os comboios, mas isso é só por mais uns diazitos http://www.diariocoimbra.pt/index.php?option=com_content&task=view&id=8338&Itemid=117 , e a Estação Nova vai retomar o seu fulgor de sempre, atendendo assim às preces dos seus utentes e às rezas e mezinhas dos comerciantes que já estavam a desesperar com mais esta pedra no sapato

Jorge Neves disse...

"Um pouco acima, na perfumaria Pétala, está o Armindo. Como a clientela não o maça muito, está concentrado no computador. Está a dar uma olhadela pelos blogues da cidade. Como se falasse com seus botões, se calhar, vai pensando: “vamos lá ver se estes gajos mandam alguma ferroada na APBC, Agência para a Promoção da Baixa de Coimbra” -de que é presidente, agora com uma equipa rejuvenescida. “Só sabem dizer mal…cambada de… camelos! É só bota-abaixo…”."
Ou falar a verdade mesmo que nao se goste!