sexta-feira, 9 de julho de 2010

UMA PALMADA LIGEIRA....





 São 16 horas desta Sexta-feira, ponta final de uma semana que para os comerciantes é cada vez mais igual à de ontem e cada vez menos parecida com uma outra de há cerca de uma dezena de anos e que teima em permanecer viva na memória.
Na rua transversal, nome de uma profissão, outrora movimentada por milhares de pessoas ao dia, no pequeno café, o senhor Jorge está à porta. De cara marcada por “gelhas”, como camisa a precisar de ferro, arranha na cabeça, quem sabe a lembrar-se de que há apenas três anos quatro pessoas trabalhavam no pequeno estabelecimento de hotelaria e hoje, estando só, parece ser demais para o movimento.
Na sapataria que faz esquina e tem nome de “cowboy” insolente, o Adelino, homem de muitas primaveras que, de tanto esforço consumido, quase já lhe perdeu a conta, à porta também, de olhar vago, perdido em coisa nenhuma, olha para os poucos transeuntes que passam. Repara que a grande maioria que calcorreia esta rua atapetada de pedrinhas de calçada portuguesa são pessoas de meia-idade. Leva a mão à boca, como se o gesto pretendesse impedir um grito de revolta que teima em queimar-lhe a alma. A seguir, a mesma mão, em dança invisível de gestos já anteriormente repetidos, lentamente, afaga a cabeça lisa, desguarnecida de cabelos, em direcção à moleirinha. Quem atentar nos seus lábios verá que se movem silenciosamente como a mostrarem muito sem dizerem coisa nenhuma.
 Quase à frente, noutra sapataria, mais carregada de história comercial que os alfarrábios de antanho, o “Manel”, já com sessenta e muitos, está à porta a olhar para o chão, como se contasse ler nas pedras o futuro que se avizinha negro e pouco promissor. Talvez a sua mente, em imagens que já lá vão, não pare de o atormentar. Talvez pense que há cerca de três anos eram três pessoas a labutar no seu pequeno negócio de sapatos. Hoje está só e os poucos clientes que lhe calhem em sorte são uma espécie de roleta russa.
Para esquecer a frustração desta vida comercial, naquilo em que se transformou para os mais velhos, perdidos de esperança como ele, como está sozinho, quase não pode ir beber um copito à tasca da Maria, ali ao lado na rua do almoxarifado. “Ora porra! Valha-nos Deus, pela força das circunstâncias, até este pequeno prazer me conseguiram tirar! Sim, porque os outros, aqueles que qualquer homem precisa, pelas preocupações desta vida previsível e rotineira, já há muito que se foram!” –parece pensar, enquanto dá um passo para fora e outro para dentro, num círculo imaginário desenhado a lápis invisível junto ao átrio da sua porta principal. Por momentos, um sorriso fugaz, como sombra passageira, invade-lhe o rosto. Relembra que há poucos anos, a esta mesma hora, as ruas, cheias de odores e ruídos, fervilhavam com muito mais gente. Ali mesmo, junto à sua montra, meia-dúzia de reformados jogavam à moeda. Parece ouvir os sons: “cinco…três…sete…zero…ganhei!”, diz um dos jogadores cheio de contentamento, ao mesmo tempo que se encaminham todos para a tasca da Maria, onde o último, que perdeu, irá pagar uma rodada de copos de “três” e umas sardinhas em escabeche.
Tudo isso desapareceu. Foram-se os mais velhos, muitos estão acamados ou já morreram, e a rua dos mil fragores, hoje, ontem e noutros dias atrás, está sem pio. É mais uma artéria igual a uma qualquer aldeia do interior, pensa o “Manel” sapateiro em montes de imagens mentais. De repente, como zumbido de abelha, os seus pensamentos em catadupa são interrompidos.
“Agarrem! Agarrem que é ladrão!”, grita o dono da ourivesaria Rogério, em pungido apelo, ao mesmo tempo que um indivíduo de cerca de trinta anos, bem vestido, sai da relojoaria em passo apressado. Acabou de surripiar um anel de ouro. Como a rua fala sozinha em diálogos monocórdicos entre o Sol e a sombra, ninguém lhe tolhe o passo.
Estes são os novos ruídos que invadiram o Centro Histórico de uma cidade, que, na sua quietude de modorra, faz lembrar as avenidas de ciprestes dos cemitérios. Aqueles becos e vielas inscritos numa história que se finou, outrora centros de vida, estão agora transformados em depósitos de vivos-mortos que a esperança perdida já não consolará.

1 comentário:

Jorge Neves disse...

Sorte do larápio, passei por ai a essa hora e não ouvi, no minimo iria a correr atras dele.