quinta-feira, 29 de abril de 2010

UM CASO DE SAÚDE PÚBLICA




 O rapaz, de passo ondulante, a cair de um lado para outro, como cana tocada pelo forte vento no canavial, parece ir estatelar-se no chão calcetado da rua a qualquer momento. Numa das suas mãos, como prova do pecado, um pacote de vinho, de um litro, mostra a que se deve a sua embriaguez.
Acaba por se sentar no patim armoriado de um estabelecimento comercial.
Como animal abandonado, a baba escorre-lhe por entre os beiços descontroladamente. Uns minutos antes, em pleno largo, sem inibições, retirou o pénis e como outro espécime parecido com o homem, urinou as pedrinhas de calçada portuguesa.
Para quem passa, e não o reconhece, é um ébrio igual a outro qualquer. Mas este rapaz não é igual a outro semelhante pleno de todas as suas faculdades mentais. Este ser humano é declaradamente e reconhecido inimputável pelo tribunal.
 Quando estou a tirar-lhe a fotografia, com ele sentado no patim da loja comercial, vem lá de dentro um funcionário, assim um pouco para o espavorido, de voz grave e taxativa, proclama: “ó Luís, fazes o favor de tirar a fotografia mas de modo a que não se reconheça o meu estabelecimento. Estás a ouvir?”. Penso que, por estas palavras, dá para ver a forma como se encara este vagabundo das ruas estreitas, que o é sem saber ou ter alguma noção do que faz.
 Ainda ontem falei dele aqui. Já circula pela Baixa há muitos anos. Quando anda sem álcool não faz mal a ninguém. Engraçado é que parece reconhecer quem lhe faz bem. Como foi aspirante na tropa, outro caso curioso, quando lhe tiro uma fotografia, coloca-se sempre em prefeitura, na posição de sentido, com a mão em sinal de continência.
 A mãe faleceu há cerca de 20 dias. Mal a conheci em vida. Só falei com ela há uns anos. Entrou-me de rompante na loja, com ar ameaçador, e disse: “o senhor é que é o Luís Fernandes?”. Eu anuí. Ela não disse mais nada e saiu. Várias vezes me cruzei com ela na rua mas nunca me dirigiu palavra. Penso que, quando veio ter comigo, deveria ter pensado que eu queria mal ao filho. Nessa altura, o rapaz arrastava-se pela Baixa com um dedo a gangrenar por causa de uns anéis que trazia num dedo e estavam a provocar-lhe insuficiência de irrigação sanguínea. Foi um problema para que as entidades competentes agissem. Fui à esquadra da PSP, nada. Até que fui ao Ministério Público e, então, depois de a custo convencer a magistrada, lá foi intervencionado. Suponho que a mãe, numa primeira fase, teria interpretado mal o meu acto.
 Durante vários dias, e após o desaparecimento da sua progenitora, este rapaz desapareceu da Baixa. Agora, num estado lastimoso, vagueia por aqui. Quem é responsável por esta alma que, não sendo penada, pena pelas vielas e becos do Centro Histórico?
 Mais um pormenor importante: quem vende álcool a este deficiente psíquico, se a lei o proíbe? Há muito que se consta que é nas pequenas superfícies comerciais que existem aqui na Baixa. É ou não é? É muito difícil um agente da PSP deslocar-se a uma delas, chamar o gerente e mostrar-lhe as consequências de vender vinho a um inimputável?
 Pela alma da mãe, pela saúde pública, pelo bem de todos, pelo respeito que este ser humano merece, esta situação não pode continuar. Envergonha-nos a todos.
 A quem de direito, que mova apenas um dedo e ordene que se faça alguma coisa…

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