sábado, 17 de abril de 2010

ROSA VERMELHA


(IMAGEM RETIRADA DA INTERNET)



Corria o ano de 1946. Na pequena aldeia, próximo da cidade, grande entreposto ferroviário, nascia a pequena Rosa. Vivia-se o rescaldo da Segunda Guerra Mundial. Havia poucos meses que se assinara o armistício entre os países envolvidos.
Embora fosse uma época muito difícil para os portugueses em geral, a pequenina estava salvaguardada financeiramente de todas as intempéries económicas. O seu pai era um dos maiores lavradores da região. Todos aqueles milhares de hectares de terra agricultorada em redor da povoação e até ao horizonte eram dele. Na região do baixo-mondego, o pai de Rosa, sempre que podia, dava trabalho a todos os que estivessem dispostos ao esforço. Chegava a ter quase uma centena de trabalhadores no ponto alto da safra do milho.
Naquela herdade agrícola já havia uma debulhadora mecânica, descascadores de arroz, semeadores e tudo o que era necessário para poder rentabilizar a terra. O pai de Rosa sabia quantos alqueires de trigo poderia dar um hectare. Era engenheiro agrónomo. Era um bom pai, austero, mas um homem generoso que amava profundamente o seu filho-varão, já um pouco mais velho, e agora a, entretanto, nascida Rosa, “mais que tudo” para o grande agricultou mondeguino.
Rosa era uma miúda diferente. Era viva, inteligente e profundamente sonhadora. Muitas vezes, para seu encanto e deleite, o velho senhor, foi encontrá-la deitada no meio do milho, de folhas frondosas e verdes, com as maçarocas, em forma de espiga, a contar estrelas no céu. Dizia que estava a lavrar e a mondar aquele imenso infinito. Outras vezes, apontando a Lua, ao mesmo tempo que fazia jeitos com as mãos, como se estivesse a correr um carreto de pesca, fazendo trejeitos de esforço, mostrava ao seu tutor que aquele planeta distante, símbolo do amor, estava a arrastar-se para junto de si. Era a sua Lua. Tratava-a como se fosse um papagaio de papel. Perante estes quadros de sonho, o velho pai sorria de contentamento.
Neste corpo de criança, flor de vida, havia várias Rosas. Havia a Rosa brava, que, perante uma injustiça ou uma malvadez de alguém, facilmente, elevando as unhas e um descontentamento, mostrava aos infractores que o melhor seria mesmo não se meterem com ela; havia a Rosa branca, aquela criança amorosa, generosa de coração mole, que dava tudo, até a camisa se necessário fosse, e apostava forte na paz entre as pessoas; e havia a Rosa Vermelha, envolvente de fogo rubro, entregue a todas as causas nobres, que corria atrás de uma paixão, largando tudo, como se fosse o seu papagaio de papel, a fugir em direcção à eternidade. Os seus olhos ligeiramente rasgados, profundos, de olhar negro, emoldurados por duas longas tranças pretas, faziam dela o centro do centro de todos os olhares dos rapazes da aldeia. Embora não lhe faltassem pretendentes, a rapariga não pendia para nenhum. Para se render a alguém só se fosse embrulhada em paixão. Estava escrito nas estrelas, costumava proferir com ênfase.
Rosa foi sempre uma boa aluna. Foi num ápice que chegou à Universidade de Coimbra. Depressa se licenciara numa área de botânica. Mas Rosa era volúvel, como volúvel é o vento, e depressa chegou à conclusão que a área que gostaria de cursar seria Direito. E entra no sonho de vir a ser advogada em Coimbra. É então, pela primeira vez, que é mordida por Cupido. De tal modo foi profundo o toque do amor que, por essa paixão, Rosa abandona a Faculdade. Casa com o seu amor e depressa fica grávida do primeiro filho. Mas a paixão é como o fado, quando ouvimos os trinados de uma guitarra apetece-nos chorar. Somos invadidos por uma nostalgia, uma saudade, uma tristeza que nos consome a alma. Naquela hora, naquele enleante chorar de anjos, fazemos tudo. Quando passa, como nuvem passageira, voltamos ao que tudo era antes. Assim é a paixão. Passa a onda e o amor, que até aí era edílico, e mostra-se em toda a sua plenitude como uma relação de afectos entre duas pessoas. E o romance de Rosa caiu. Esta flor de jardim foi sempre uma apaixonada por tudo o que a vida lhe pode proporcionar. Só consegue viver no fio da paixão. Por volta do início da década de 1970, para desgosto do velho pai e escândalo da região além-mondego, Rosa divorcia-se e fica com o fruto do seu amor. Vai trabalhar para um grande instituto botânico na cidade.
Entretanto, mais uma vez apaixona-se de caixão à cova. O velho lavrador, temendo novo desastre ia avisando: “cuidado filha! Não te guies pelo teu sexto sentido. Embora ele sempre esteja presente em todas as mulheres, em ti, não se sabe o que aconteceu, mas não tens. Não nasceu contigo. Ao longo da tua vida, toma atenção, filha. Vão acontecer-te muitas surpresas!”.
Mas Rosa vermelha não conhecia o amarelo intermitente e, mais uma vez dá o enlace com o amor da sua vida. Agora é que era, dizia ao seu pai para o tranquilizar. Volta a ficar prenha do seu segundo filho e rapaz. Naturalmente que a paixão, como água que rega o milho na canícula e se vai evaporando e desaparecendo nos interstícios da terra negra, foi-se tornando uma realidade: era mais um amor sem história. Esta mulher de “passione” depressa se apercebeu que a realidade, mais uma vez, lhe pregara uma partida.
Estamos no fim da década de 1980. Portugal, quatro anos antes, aderia à então CEE, Comunidade Económica Europeia. Como o país era excedentário na produção agrícola de vários produtos, começou a financiar-se a aposentação de muitas pessoas que trabalhavam nos campos. Para além disso, o preço do milho, do arroz, do trigo, começou a cair. Com esta decadência da agricultura, a saúde do velho engenheiro agrónomo ressente-se e depressa fica acamado. Rosa, cujo pai era o farol da sua vida, despede-se do instituto botânico e vai cuidar do senhor seu pai. Toma as rédeas dos longos hectares de terra. Sonhadora como era, sempre com os olhos postos na Lua, contrariamente aos vizinhos, continuou a apostar tudo no amanho. Pediu um grande empréstimo bancário, hipotecando as propriedades agrícolas, e, mesmo sem mão-de-obra, passa ela a ser a Rosa "faz-tudo" nos campos de arroz. O seu pai morre da vida mas também de desgosto.
Durante os dois anos seguintes, para além de os preços dos produtos agrícolas continuarem a cair, também devido às borrascas, foram muito maus para as safras. Rosa entra em dificuldades financeiras. Antes que a sua casa, o seu lar de memórias que não trocaria por nada deste mundo, se vá, penhorada por falta de pagamento do empréstimo, faz uma venda fictícia a seu irmão mais velho da sua parte na herança.
Os terrenos hipotecados são vendidos em praça pública no início da década de 1990. Rosa perde tudo. Com aqueles terrenos vai um pouco da sua alma. Mas ainda resta a parte da sua grande casa agrícola. Resta? Não, não resta, porque o irmão mais velho, apanhando a sua parte, nega-se ao ressarcimento. Mais uma vez o seu sexto sentido falhara. Bem a avisara o seu velho pai.
Rosa fica em choque. Numa extrema miséria não tem onde viver nem comer para dar aos seus dois filhos. Mas Rosa é lutadora. Começa a trabalhar a dias, como empregada doméstica, na cidade. Trabalha noite e dia para alimentar os seus dois filhos.
Sem dinheiro, pedindo aqui, pedindo acolá, Rosa fica com um trespasse de um pequeno café na  cidade. Trabalha, trabalha, sempre de sorriso nos lábios. Não desiste, não conhece este verbo. Toma de arrendamento um edifício inteiro e arrenda quartos a estudantes universitários. Do primeiro café passa para outro junto ao prédio onde agora mora. Rosa Vermelha, rosa trabalhadora, continua a lutar todos os dias. É incrível o brilho dos seus olhos. É uma montanha de força anímica, de vontade de vencer.
Obrigada Rosa! É um gosto conhecer-te, mulher. Gosto muito de ti. És um exemplo para mim, para todos, e especialmente para os teus filhos.
UM GRANDE BEIJO, ROSA VERMELHA.

*TEXTO ESCRITO PARA A "FÁBRICA DE HISTÓRIAS" SOB O MOTE "SEXTO SENTIDO"
http://fabricadehistorias.blogs.sapo.pt/46404.html

6 comentários:

Anónimo disse...

Parabéns Luís, gostei muito da história,deu-me vontade de conhecer a Rosa,penso que será o melhor elogio.Obrigado,também,por me dar a conhecer o blog Fábrica de Histórias,fiquei um «cliente» mais ou menos assiduo.O Luís confirmou que por vezes as melhores histórias estão junto ou perto de nós,e as personagens principais são conhecidos ou amigos.Claro que a isto junta-se a vocação e o talento do autor.Pense nisto Luís,não será o próximo Nobel,mas já li obras publicadas por editoras de renome nacional sem metade da qualidade de alguns escritos seus.Estou á vontade para afirmar isto,porque nem conheço o Luís pessoalmente.
Marco

LUIS FERNANDES disse...

Obrigado, Marco. É muito generoso. O que escrevi, embora romanceado, é a história desta mãe-coragem. Elogios a haver deverão ser para ela. Afinal quantas "Rosas", como esta minha amiga e que muito me orgulho, todos os dias passam por nós na rua?
Muito obrigado e um grande abraço.
Luís

Sónia da Veiga disse...

E alguma vez eu iria escrever algo que se assemelhasse a esta beleza?!?
A minha intuição bem me dizia...

Que o tema da revolução enterre os machados que por aqui andam e, apesar de ser contra o suicídio por tabaco, que se fume do cachimbo da paz!!! ;)

LUIS FERNANDES disse...

Como sempre generosa, Sónia, mas se o encómio é desculpa para deixar passar a sua falta semanal de não ter escrito um conto, nem pense. Tenho de passar a ser duro consigo. Aliás, vou impor penalizações. Isso não pode continuar.
Vamos lá a ensaiar a revolução dos cravos...no papel.
Abraço e obrigada.
Luís

Maria João disse...

Cheguei cá através de uma amiga mútua, a Idalina Pata.
Nestes computadores públicos torno-me muito mais limitada em termos de visitas pois os endereços URL não ficam senão durante uma sessão.
Gostei muito desta sua Rosa :)
Um abraço!"

LUIS FERNANDES disse...

Muito obrigada, Maria João. Ainda bem que gostou, Volte sempre que quiser. As portas estão sempre escaqueiradas, Desde que tive que despedir o porteiro, o senhor Anacleto, por falta de pagamento de salários, passei a franquear a entrada a toda a gente. Portanto, já sabe, é só entrar, percorrer os textos afixados e relaxar. No bar, situado do lado esquerdo de quem entra, estão uns licorzitos, faça o favor de se servir. É natural que, enquanto percorre os aposentos simples e modestos, um grande gato farfalhudo, de estilo persa, olhe para si com olhos de gato-mal morto, não se assuste, é pacífico como o dono. Verá que a seguir -o malandro- vai roçar-se nas suas pernas -Juro que não fui eu que o ensinei.
Em suma, esteja à vontade.
Dê cumprimentos à nossa amiga comum, a Idalina -que tenho de lhe confessar: não sei quem é. Mas também não estranhe, nem sei que dia é hoje.
Um abraço e obrigada.
Luís