domingo, 28 de março de 2010

SAUDADE DE ANGOLA...






 Chamo-me Avelino, tenho 76 anos e moro nas redondezas da cidade. Passando a imodéstia, sou um velhote simpático. Sou assim um pouco para o atarracado, à volta de pouco mais de um metro e meio de altura. Quem me olhar com olhos de nada ver, como quem avalia um livro pela capa, toma-me por mais um velho igual a tantos outros que se encontram por aí. Hoje, nesta sociedade envelhecida, os velhos são como as ervas daninhas, parecem nascer ao virar da esquina. Mas, quem atentar bem no brilho dos meus olhos, verá que tenho um espírito rebelde, como se estivesse aprisionado dentro de um pequeno corpo. O meu bigodinho, à Errol Flynn, dá-me assim um certo ar diferente, de vanguardista de um qualquer movimento criado na sombra dos dias ou nos dias que voam, tanto faz.
Em 1960, tinha eu então 25 anos, embarquei para Angola. Cá, na metrópole, como então se dizia, eu era marceneiro, ganhava 30 escudos por mês. Através de um contacto, recebendo carta de chamada, fui para aquela grande ex-colónia portuguesa ganhar logo 220 escudos.
Aquela imensa colónia ultramarina era fantástica. Metaforicamente, era o paraíso terreno, uma terra abençoada pela natureza. Aquele solo sagrado produzia tudo e sempre a dobrar. Lembro-me, por exemplo, que aqui, devido ao elevado preço proibitivo, nunca comia bananas. Lá, um quilo custava cinco tostões. Quando entrávamos num qualquer bar, se pedíssemos um copo de cerveja davam-nos para acompanhar um pires de camarão, mas grande, não era desse da "pedra", pequenino.
Eu sempre fui caçador. Havia alturas, em certas zonas daquele grande país, que o jipe em que nos fazíamos transportar parava por força do magnetismo do solo. Olhávamos para baixo, entre o fundo do carro e o solo, e víamos raios de luz a faiscarem. Eram os diamantes enterrados sob poucos metros de terra. Se pudesse, hoje mesmo, tomaria um punhado dela e beijaria com sofreguidão, levando-a à boca e inalando o seu cheiro agridoce.
Era um território fantástico, até pelo seu clima imprevisível. Tão depressa chovia a rodos, como se Deus estivesse irritado com os humanos, como, logo a seguir, em escassos minutos, o Sol sorria como criança despreocupada e feliz. Nesta ambivalência climática, parecia que o Criador era bipolar. Tão depressa estava aos gritos, como logo a seguir aos beijinhos.
Tinha uma vida boa. Sempre tive o cuidado de respeitar toda a gente, independentemente da cor da pele. Na oficina de carpintaria onde trabalhava, ao meu lado, a folhearem os móveis, havia 139 pretos. Éramos todos amigos. Lá dentro e fora do serviço. Eu era empregado como eles. Nunca tive problemas com nenhum.
Fiz a minha casa, ao lado do Garfanil, paralelo ao quartel. Tinha lá a minha família e a vida organizada. Éramos todos tão felizes! Tivemos 9 filhos. Um deles morreu por causa de uma injecção mal administrada.
Havia brancos muito maus. Eu via alguns, na forma como tratavam os pretos servidores. Alguns iam para receber ao fim do mês e não lhe pagavam o salário. Invocavam que já tinham recebido. Aquilo gerava revolta, é óbvio.
Pouco tempo antes do processo infamante da descolonização, lembro-me, um dia, estava numa estalagem, a almoçar, longe da cidade, no morro de Catete, a caminho de Malange, andava à caça e estava acompanhado de mais três amigos também caçadores. O empregado de balcão era negro retinto, de ar humilde e olhos muito brilhantes. Entrou um branco, chegou ao balcão e disse: “faz-me aí duas sandes para dois cães que tenho lá fora. O rapaz fez e, acompanhado do branco, levou-as à rua. Cá fora, à espera, estavam dois trabalhadores pretos. Quando o funcionário voltou para dentro reparei no brilho irado de fúria contida que os seus olhos denunciavam. Recordo-me bem, disse para os meus colegas: é por causa de filhos de putas como este que um dia vamos ter todos de fugir daqui. Passado menos de um ano estava a entrar no avião com uma mão à frente e outra atrás. Materialmente, deixei lá tudo. Para além da família, apenas com a roupa no corpo, só trouxe mesmo recordações e saudade.
Morreram lá muitos soldados indevidamente. Muitos deles, como néscios, entravam sozinhos nos “muceques”, nos bairros pobres de palhotas. Iam às “meninas”. Apareciam depois decapitados à catanada. A mensagem para Portugal, em jeito de epitáfio, era sempre a mesma: “morto em combate, em defesa da Pátria”.
Aquela descolonização foi uma vergonha. Os políticos portugueses da altura não tiveram em conta os interesses de gente honesta que simplesmente lá trabalhava. Trataram-nos como escroques da pior espécie. Abandonaram-nos, pura e simplesmente.
Lembro-me de ver um grande político da nossa praça, mandar queimar a nossa bandeira (desculpe, tenho de tirar o lenço, estou a chorar). Estava acompanhado com outro, também de renome e já falecido. Mandou hastear a do MPLA e quando a nossa desceu até à altura de um homem, mandou regá-la com gasolina e ordenou que lhe pegassem fogo. Eu vi, com estes olhos que a terra há-de comer. Ali, naquela espécie de comício, em que os portugueses estavam a ser vilipendiados e espezinhados na sua dignidade por um vendido da Pátria, eu chorei como uma Madalena arrependida.
Muitos portugueses morreram por culpa destes imbecis e calculistas, que só visavam o interesse deles. Eu vi gente morrer à minha frente. Eu presenciei uma adolescente de 13 anos ser violada por seis pretos na presença dos pais. Ainda hoje me interrogo se teria feito tudo o que estava ao meu alcance. Mas o que poderia eu fazer? Se interviesse, era mais um pescoço cortado e a derramar sangue naquela terra de homens transformada em demónios num inferno de Dante.
Todos os dias penso em Angola. Ainda sonho muito com aquela imensa pradaria que não voltarei a tocar. Nessa fantasia, umas vezes estou sentado no chão. A chuva molha-me o rosto e vejo os grossos pingos de água, lentamente, muito devagarinho, a baterem no solo e levantarem poeira “chapiscada” com vapor. Outras vezes, no sonho, vejo-me a dançar, dançar como um louco, num calor tórrido de 40 graus.
Quando aprecio uma foto, ou uma reportagem sobre Angola, choro desalmadamente como uma criança de berço. Se eu pudesse, largava tudo. Não olhava para trás, para ir ao encontro do meu amor. Infelizmente, estou velho, tenho uma reforma miserável, nunca mais vou beijar a minha adorada terra longínqua do outro lado do mar. Se me dessem a escolher um grande prémio, pode crer, escolheria uma viagem para ir lá. E mais, adorava ser lá enterrado. Bem sei que nada disto será possível.
De lágrimas nos olhos, fica o grito de despedida: ADEUS ANGOLA, MEU AMOR!

*TEXTO ESCRITO PARA A "FÁBRICA DE HISTÓRIAS" SOB O MOTE "SAUDADE".
http://fabricadehistorias.blogs.sapo.pt/42896.html?view=459664#t459664

4 comentários:

Anónimo disse...

Boa escolha Luís, infelizmente esta história é a de muitas famílias, pois quase todos nós temos familiares que nasceram ou viveram nas antigas provincias ultramarinas.O narrador comenta o facto da descolonização ter sido uma vergonha.É verdade que muitos trabalharam nessas colónias e vieram sem nada, e no regresso não foram devidamente auxiliados. Mas existiram outras vitímas desta vergonhosa descolonização:os que lá ficaram, pretos ou não.
Os politicos da altura(todos sabem quem são) entregaram de mão beijada o poder a organizações terroristas de inspiração marxista-leninista.Organizações essas transformadas em partidos totalitários e autoritários, como MPLA, PAIGC, Frelimo, etc.O resultado está á vista, nacões com potencial e riqezas enormes estão na miséria, a população continua a sofrer as consequências.Angola e Moçambique, por exemplo, ainda hoje não não sabem o que é uma democracia pluripartidária ou a liberdade de expressão.Portugal continua a tratar ditadores como José Eduardo dos Santos com toda a reverência, quando devia, em jeito de compensação, denunciar á comunidade internacional a situação politica e social do país.
Abraço,Marco

LUIS FERNANDES disse...

Obrigado, Marco. É como diz, infelizmente, é tudo verdade, mas em política, entre nações, há interesses e pouco mais. Esta história que transcrevo, ouvida ontem da boca do senhor Avelino, é tudo verdade. Eu apenas romanceei, nada mais. A súmula da verdade está lá. É a história do senhor Avelino, um simpático velhote que mora nos arredores de Coimbra. Não inventei nada...além das metáforas, é claro.
Abraço e obrigado.

Ana "Strobe" Mendes disse...

Além de um belíssimo texto devo admitir que me emocionei com essa verdade por si romanceada, é de enaltecer a sua beleza de espirito, poucos seriam aqueles que pegam na vida dos outros para deflagrar histórias como esta, histórias de vida que merecem respeito. Tenho a certeza que esse senhor foi alguém muito feliz, e isso não tem preço.
Bonitas palavras, gostei muito. De novo devo admitir que adoro ler o que escreve.
Um abraço de já sua "fã".

MoonDreamer disse...

Parabéns é a única palavra que me ocorre, mas expressa apenas muito palidamente o que gostei de ler este texto.
Um relato na primeira pessoa da história de tantas pessoas que conhecemos.Os nossos heróis que hoje vivem apenas de memórias agridoces e muitas saudades.
Obrigada por partilhar de forma tão brilhante, tão bonita história!!!