segunda-feira, 22 de março de 2010

BENTO, O VENDEDOR DE ESPERANÇA






  São 10 horas de Domingo. Um sol primaveril, acalentador, como se quisesse compensar as almas, banha a esplanada do café Santa Cruz, em Fátima. As cadeiras do pequeno estabelecimento, dentro e fora, estão repletas de pessoas. Aqui e ali, ouve-se a língua de Cervantes.
Ao longo da rua, todos os estabelecimentos já estão abertos. Porta sim, porta não, vêem-se os responsáveis a compor a exposição na rua para servir de cartão de visita e levar os clientes ao interior da loja. Outras mulheres, certamente mais afoitas, porque já expuseram o emaranhado de imagens sacras e panos bordados, conversam em grupos de três, quem sabe, a telenovela ou até os ordenados chorudos dos administradores “chairman”, dos presidentes não executivos das empresas comparticipadas pelo Estado. Toda esta movimentação é acompanhada por um ruído de fundo, vindo de Este, do Santuário das Aparições.
Enquanto a minha mulher, católica praticante, foi agradecer a Nossa Senhora, eu, um blasfemo assumido, um agnóstico que não foi iluminado pela luz da fé, sentado num canto da esplanada, com um jornal à frente, vou intervalando, levantando os olhos, entre as notícias do dia anterior e o que se passava à minha volta. Gosto de observar as pessoas, os seus gestos, os seus sorrisos, aquelas manifestações primárias e intrínsecas ao ser humano.
Foi então que vi o vendedor com uma mão cheia de números de lotaria na mão. É um homem simples, de sessenta e picos anos. Se existir um estereótipo de português, estaria perante o modelo. Tem um ar afável e calmo. É daquelas pessoas que se gosta ao primeiro olhar. Em passo cadenciado, sem pressas, como farol na barra da praia, passou o olhar a varrer toda a esplanada do Santa Cruz. Aposto que em segundos tinha feito um diagnóstico dos prováveis compradores de cautelas. A primeira aposta foi na mesa ao meu lado, numa família de seis pessoas. “Bom dia” –cumprimentou com um meio sorriso, em que o seu rosto se iluminou e os olhos ficaram mais pequeninos. Nota-se que, durante toda a sua vida, teria sido sempre uma pessoa tímida. Daí não presentear os clientes com um sorriso rasgado. Mas, apesar de contido, dava-lhe um ar de “puto traquina”. “Então não querem comprar o 21?” –era a terminação daquele bilhete-, ao mesmo tempo que largava as duas fracções em cima da mesa. “O senhor só tem jogo branco…”, provoca o chefe da família. “E quem saberá, meu amigo?”, responde o vendedor com ar solene e sorrindo. “Amanhã anda a roda. Quem sabe se não será o 21?”. Estrategicamente afasta-se, deixando as duas cautelas em cima da mesa.
De certeza absoluta que este homem não leu Freud, mas, pela sua experiência empírica, ao longo da vida, aprendeu a conhecer antropologicamente o ser humano em toda a sua vertente comportamental. Ele sabe que deixando as duas cautelas sobre o tampo da mesa, o simples olhar dos presentes sobre o número vai desencadear um conflito entre o não dever comprar pela crise financeira que os toca e o comprar pelo ímpeto, porque se fixou o número. “E se amanhã é este o número sorteado? E eu tive-o mesmo na minha mão?!”. Em solilóquio de balanço existencial, quase sempre o “sim” é a solução final. Em terra santa, não vá o diabo tecê-las.
O vendedor foi correndo todas as mesas, menos aquelas ocupadas por espanhóis -que estes, certamente, pelo seu “El Gordo”, não ligarão a estes trocos. Lá foi vendendo mais umas fracções. Deu a volta a todo o estabelecimento e voltou novamente à mesa ao meu lado. Eles ficaram com os dois números terminados em 21. Começou a afastar-se. Em forma de balanço final, voltou-se para trás, não fosse ter ficado alguma mesa por abordar. Olhou para mim, mirou-me de alto a baixo. Certamente, perante as calças de ganga surradas e os sapatos que já viram melhores dias, terá pensado: “com este não me safo…e ainda por cima sozinho”. Mas vendedor é uma pessoa de esperança infinita e nunca desiste perante um pensamento negativo. “E quem sabe, e se ele me compra uma cautela?”. Antes de ele decidir, fiz um gesto com a mão.
É o senhor António Bento. Trabalhou como tipógrafo até há oito anos atrás, quando se aposentou. Como era uma vida muito sedentarizada, acabou por receber de prenda uma “tromboflevite” –é um processo inflamatório que afecta um segmento localizado de uma veia e acabando por formar um coágulo. “Como tinha o sangue muito grosso -explica-me- o médico disse que eu não poderia fazer como os outros reformados. Que era estar sentado, diariamente, num banco de jardim à espera que a noite caísse. Tinha de andar a pé. Então achei que vender lotaria poderia ser uma boa opção. Gosto muito, sabe? Vendo muito bem. Entro facilmente com as pessoas –esta coisa da experiência da vida é muito interessante, não é? Sou um pouco culto, leio bastante. Uma pessoa tem de se actualizar, não é verdade? Nunca engano ninguém. Eu sei que sou um vendedor de esperança. Quando me perguntam se tenho números premiados, rio-me. Então eu sei lá? Se eu soubesse ficava com ele para mim…é o que digo às pessoas. Apesar de já ter dado vários prémios…até um primeiro prémio, estava eu ainda há pouco tempo nisto. Eu gosto de dar a sorte às pessoas. Para além da publicidade, é maravilhoso! Muito obrigado por ter falado comigo. Boa sorte para esse número…era bem feito! Quando passar por cá, não esqueça: António Bento. Lembre-se do Papa Bento…sou sempre benzido!”.

1 comentário:

Anónimo disse...

Agora Luís já sei porque no domingo consultei o nosso blog várias vezes e estranhei o facto de não haver novos posts, foi visitar um dos maiores negócios do país, dar uma volta.Agora mais a sério, o Luís refere que é um agnóstico assumido, já somos dois.Falo nisto pelo seguinte: gostaria de ter sido abençoado com aquele sentimento de acreditar em deus, de que Ele está sempre presente.Ter uma fé inabalável Nele e que os meus problemas com a Sua ajuda serão resolvidos.Tenho pessoas na família que o sentem(a minha mãe,p.e.), e sou testemunha: esta fé tem-os ajudado, e muito!
Talvez se eu acreditasse,se fosse um crente em Deus, a minha vida e de quem me rodeia corresse melhor.Será que sim ou não?
Abraço, Marco