sábado, 20 de março de 2010

ACREDITAR OU NÃO ACREDITAR...





  Estávamos em 1982. Eu começara a trabalhar muito cedo na hotelaria, quase criança. Com 25 anos já laborava há 15. Nessa altura, estava há nove anos numa loja de comércio como marçano. O meu maior sonho seria trabalhar por minha conta. Mas era muito difícil para quem nada tinha, a não ser um sonho e uma ambição que mal cabia numa mente e corpo tão pequenino. Foi então que o destino se encarregou de me pôr à prova. O patrão fez-me uma sacanice que atentava contra a minha dignidade. Então eu tinha duas hipóteses: ou continuava enxovalhado a trabalhar ou pegava no casaco e ia-me embora…sem nada. E foi o que fiz.
Ainda me lembro, no dia seguinte, de acordar às 8 horas da manhã e…receber um murro no estômago em forma de pensamento: Não tenho trabalho! Como é que vai ser? Já estava casado e com uma filha. Mesmo assim levantei-me e, em seguida, fui ter com dois amigos da minha geração, que tinham um café, e perguntei-lhes se precisavam de um empregado…estava sem trabalho, retorqui. No dia seguinte estava a servir às mesas no café dos meus amigos –até hoje, só estive desempregado um dia.
Embora tivesse começado a minha vida de trabalho na hotelaria, sempre sonhara ter uma loja de comércio. Nunca me tinha sentido inclinado para ser dono de um café. Então, ao regressar à hotelaria, quase forçado pelas circunstâncias, comecei a aperceber-me que, nesta actividade, com umas existências mínimas, com três ou quatro garrafas de licores e brandes, uns sumos e umas sandes, se poderia fazer diariamente um grande apuro de caixa. Contrariamente no comércio, para se vender uma camisola era necessário ter em stock uma dúzia. Ali, naquele pequeno espaço hoteleiro, para mim, fez-se luz. Dali a ter um café meu seria apenas uma questão de tempo. O problema era a falta de dinheiro. Para além disso, nessa altura, em 1982, Portugal estava a atravessar uma grave crise económica. O FMI tinha imposto medidas restritivas duríssimas. Os juros na Banca estavam a 38 por cento. E mais: quem tivesse a sorte de ser bafejado por um empréstimo –que seriam poucos, só aqueles que pudessem apresentar bens como garantia real- teria de deixar logo no banco os juros à cabeça. Ou seja, os juros eram postecipados. Quem pedisse, por exemplo, mil contos –hoje, 5000 euros-, só levava para casa 620 contos. Os restantes 380 ficavam logo na instituição de crédito.
Durante meses, diariamente, comecei a ler a página dos anúncios do único jornal da cidade, à procura de um café que haveria de se tornar meu. Um dia vejo um anúncio de um trespasse de um café numa parte velha da cidade que eu nunca fora. Fui lá ver o estabelecimento. Estava muito decrépito mas era numa zona turística da urbe e isso agradou-me. Por que estavam a vender? Interroguei. Tinha morrido um dos sócios num acidente de viação. E quanto estavam a pedir? Continuei a interrogar. “Seis mil contos”, disse o homem, “e olhe que é bom negócio. O café trabalha muito bem!”. De repente eu disse, imagine que eu lhe oferecia 5 mil contos, divididos da seguinte forma: como estamos em Julho, na assinatura do contrato-promessa, eu entregava-lhe 500 contos. Fazíamos a escritura em Outubro próximo –que é quando se vence um depósito a prazo que tenho no banco- e eu daria mais mil contos nessa altura. O restante seria pago então em cinco anos. O senhor aceitaria? A verdade é que o hoteleiro pareceu vacilante e não ficou muito surpreendido com a proposta. Algo me dizia que ia mesmo aceitar. Se ele concordasse, como é que eu haveria de me arranjar? Os meus únicos bens eram um carro “Mini” usado e que valia 50 contos. É evidente que o depósito a prazo que referi só existia mesmo na minha cabeça. Logo se verá, interpelei os meus botões.
No dia seguinte recebi um telefonema no café onde trabalhava. O homem aceitava a minha proposta. Combinei ir falar com ele no dia seguinte. E agora? Pensei. É preciso é calma! A sorte não protege os audazes? Eu não era audaz? Nesse mesmo dia, à noite, fui falar com um meu cunhado e muito meu amigo, que trabalhava num serviço público. Por linhas e travessas, consegui demonstrar-lhe que estávamos perante um grande negócio e, mais, consegui convencê-lo a ser meu sócio. No dia seguinte lá estávamos a acertar agulhas com o proprietário do café. Ficou combinado que passados três dias assinaríamos o contrato-promessa. Havia um pequeno problema: tal como eu, o meu amigo e cunhado não tinha “cheta”. Combinámos no dia seguinte que cada um de nós iria tentar arranjar 250 contos. Depois de muito sofrer, pedindo a familiares e outros, conseguimos. No dia marcado lá estávamos no advogado a assinar o acordo.
Entrámos então no nosso novo negócio. Se nos preocupava os mil contos para Outubro próximo, era preciso calma, que ainda faltavam quatro meses. Passados 28 anos, consigo lembrar-me daquele momento mágico, de estar sozinho, dentro do meu pequeno negócio, e, com os olhos, lentamente, percorrer todas as prateleiras com algumas garrafas e acabar num telefone preto, de baquelite, e pensar: já tenho um telefone.
Depois de dar uma grande limpeza e fazermos umas pinturas ligeiras, convidámos os amigos e familiares, e reabrimos o café. Logo nesse dia, por volta das 23 horas, começámos a ouvir gritos no largo em frente. Eram dois homens à pancada. Por uma questão de precaução, encerrei as portas. Passado um bocado, um dos intervenientes na bulha veio bater à porta. Disse-lhe que já estava encerrado, que não levasse a mal, e encostei. Mal tinha dado um passo à frente, só ouvi um grande estouro atrás de mim. Ele rebentara a porta com um pontapé. Entrou lá dentro do salão, onde estavam algumas dezenas de pessoas, e, perante a estupefacção geral, virou as mesas ao pontapé e partiu a louça toda. Perante aquele touro enraivecido, tudo saiu em pânico. O meu cunhado estava branco e eu, creio, porque ficara sem pinga de sangue, não tinha cor.
Nos dias seguintes, por volta das 21 horas, estava tudo muito sossegado, de repente, começava a ouvir copos a cair no chão. Parecia uma sinfonia orquestrada. Eu não sabia o que havia de fazer. Esta era a minha oportunidade. Se a perdesse, certamente não teria outra, mas como é que podia continuar assim. E mais: até sair de casa, com 10 anos, o meu pai, sempre que eu não me levantava de noite para ir regar a leira com ele, ditava: “dormes muito! Nunca serás nada nesta vida!”. Aquelas palavras, desde sempre martelaram o meu cérebro. Instintivamente desencadeei um desafio: irei provar-lhe que está enganado. Ora, perante a onda de violência que se estava a passar, como é que poderia fazer jus à minha promessa?
Tenho uma tia na cidade que foi quem ajudou a fazer de mim um homem. Um dia foi visitar-me ao café e interrogou como é que estava a correr o negócio. Eu respondi que mal. Não conseguia entender aquele surto de violência todos os dias, à mesma hora. Ela disse: “olha, faz o seguinte, para a semana, vai lá casa que a minha amiga América vai visitar-me e consulta-te –a América era uma vidente cartomante, que via o futuro nas cartas. Eu assim fiz. No dia marcado e à hora, lá estava eu. Parece-me estar a vê-la agora, de figura imponente, obesa, um pouco carregada de esoterismo e já com alguma idade avançada. Mandou sentar-me e que lhe contasse o que se estava a passar. E eu relatei aquela violência inexplicável que acontecia todos os dias e à mesma hora.
A América puxou de um baralho de Tarot. Embaralhou e tirou a primeira carta. Com surpresa, disse: “você não está sozinho neste negócio. Tem mais alguém consigo. Anui. Tirou outra carta e fez um esgar de medo: “chiii…aqui há coisa muito grave. Alguém lá morreu e está a perturbar o café”. Tirou outra e disse: “a pessoa que está trabalhar consigo, dentro de pouco tempo, vai sair”. Tirou outra carta e, com cara de serenidade, enfatizou: “você vai sofrer muito, mas vai ultrapassar. Vai tudo correr muito bem. Estou a ver aqui o final”.
Passado um mês o meu cunhado deixou a sociedade. Durante os primeiros anos padeci muito mas, ao fim de 12, cheguei ao final muito bem. Foi o negócio da minha vida. Onde quer que te encontres América…Obrigada!

*TEXTO ESCRITO PARA A FÁBRICA DE HISTÓRIAS, SOB O MOTE "AJUDA PRECISA-SE".
http://fabricadehistorias.blogs.sapo.pt/42896.html?view=459664#t459664

Sem comentários: