segunda-feira, 28 de setembro de 2009

UM ENCONTRO DE FAMÍLIA




Os Carvalhos são uma família dos Moinhos e Bubau, localidades próximas de Miranda do Corvo. Como tantas proles no país inteiro, tudo começou lá longe nos idos anos de 1920, com o casamento do “Manel” e da Rosa.
A muito custo, teriam comprado uma casa no Bubau. Era um pequeno edifício de pedra, com rés-do-chão, onde estavam os animais, e um pequeno compartimento, onde havia uma pipa. Em frente às escadas de pedra granítica, de acesso ao primeiro-andar, havia um pequeno pátio onde uma meia-dúzia de galinhas picava umas minhocas, na falta de uns grãos de milho. Era um pequeno e rudimentar prédio, seco de conforto mas cheio de disciplina. Se o frio e o calor se esvaía por entre os barrotes que suportavam as telhas serranas -aqueles canudos, em forma de meio-cano, em barro, que eram cozidos na terra- contrariamente, o respeito, a ternura e o amor perduravam e mantinham-se naquele pequeno e simples casebre, fazendo dele, em metáfora, uma incubadora de vidas em comum.
Vieram os filhos, presumivelmente perto de uma dúzia, porque nesse tempo não havia televisão nem forma de os evitar. Só o trabalho até altas horas da noite, tantas vezes a descamisar as espigas na cozinha, e os "Pai-nosso" e as "Avé Maria" eram o entretém possível desta família pobre. Era uma existência sacrificada de trabalho, assente em transpiração e inspiração para poder ordenar a vida. Trabalhava-se de sol-a-sol. Como era normal nesse tempo, em que a morte precoce ocupava um índice anormal na natalidade, terão morrido vários filhos ao casal Carvalho. Ficaram então sete. O João –que era um grande cantador de fado à desgarrada, infelizmente, através de um acidente estúpido, morreu demasiado cedo- o Manuel, a Clarisse, a Elisa, a Celeste, a Albertina e então a Justina, aquela que através de uma dos nove filhos, a Marlene, me ligaria à família Carvalho.
Veio a 2ª Guerra Mundial e a crise social para todo o povo português. Nesse tempo, que apesar de Salazar nos ter livrado do grande conflito, não nos livrou da fome, era difícil viver e conviver em harmonia. Por exemplo, uma sardinha era dividida por três. A alimentação diária de uma família de aldeia residia essencialmente naquela sopa frugal, feita de feijão seco e batata e naquela magnífica broa. A única carne que entrava num lar era, para além de uma galinha cozinhada em dia de festa e de vez em quando, a do porco que se engordava e depois de morto, desmanchado e colocado em sal, na salgadeira, e que, mesmo a poupar, dava só para meio-ano. Apesar das carências e das dificuldades dos Carvalhos, os filhos foram crescendo na educação possível, sempre acompanhados, diariamente, com a fé no Senhor Deus, através da reza do terço, junto às chamas na lareira, a crepitar e a reflectirem o calor nas alvas pedras brancas.
Ao lado do lume mantinha-se uma cafeteira sempre cheia de café-mistura, era a “chicolateira”. Era ela que, através da sua água-tingida, ia permitir aos mais pequenos comerem ao pequeno-almoço umas sopas de broa servidas em malgas de barro. Por cima das chamas, a fazerem desenhos imaginários, como boca de esperança num amanhã melhor, estava o forno em silêncio.
Em frente da lareira, deste centro de congressos familiares, estava o longo banco de madeira onde o velho “Manel” tinha lugar marcado como senador. Ao lado estava a “masseira”, como vigilante carro de combate, sempre pronta a ser utilizada. Era ela que, através dos braços da “ti” Rosa, malhando duro na massa, acompanhado de umas rezas ao levedar, servia de transporte entre a fome e a saciedade, ainda que parcialmente.
Por detrás, na parede de “enxamel” –técnica usual na época que consistia em revestir a madeira com barro- que dividia a cozinha de duas escassas divisões, em que, em cada uma, apenas cabia uma cama com um colchão de palha, estava o escaparate, onde, alheios ao que se passava em volta, repousavam uns pratos da Fábrica de Sacavém e umas tigelas que serviam para os petizes e também para o velho Carvalho comer as sopas de “cavalo cansado” –eram sopas de broa misturadas em vinho, que era para dar força, dizia-se.
E nesta casinha pobrezinha germinou o início de uma família que, de multiplicação em multiplicação, ao longo das décadas, até hoje, ultrapassa já em muito as centenas. Com o exemplo de trabalho e respeito do velho “Manel” e a ”ti” Rosa, todos, quase sem excepção, estão bem de vida. Todos tem a sua profissão e o seu emprego. Nesta última geração já há uma juíza, uma psicóloga e muitos outros licenciados em várias áreas. Os mais velhos, ainda vivos, com ternura, olham embevecidos para os mais novos, que, por sua vez, continuarão a desenvolver a descendência.
Ontem foi o quinto encontro anual da família dos Carvalhos. Foi na Senhora da Alegria, junto à ermida, próximo de Almalaguês. No Restaurante “Senhora da Alegria” estiveram presentes cerca de sete dezenas de membros. Depois do almoço bem servido e bem regado, para além de se distribuírem lembranças, foi também oferecida uma canção com letra e música inédita, composta pela minha humilde pessoa. Embora sem ser ensaiada, graças aos préstimos dos membros do coro, da Marina, da Rita, da Marta, da Anabela, da Dina, da Otília, da Paula e da percussão do Pedro, foi possível apresentar uma bela peça musical que deixou os decanos da família com a lágrima ao canto olho. A Albertina, uma das mais velhas, a morar nos Bugios, enternecida, exclamava: “ai que lindo! Vale a pena estar viva para assistir a estes momentos!”.
Deixo-vos a letra do poema:

UM ENCONTRO FAMILIAR

Quem lembra a Rosa
e o “Manel” à lareira,
miram seus sonhos
no calor da fogueira;
É uma casinha
tão pobrezinha!
Junto às brasas
a “chicolateira”,
ferve o café,
ao lado a masseira;
A broa espera
que o forno a queira!

Estamos aqui
pela memória
de quem fundou
a nossa história

Domingo à tarde
a família lá estava,
rezava o terço
e o fado se cantava;
Uma pinguita
na boca jorrava!
Cheirava a broa
no lugar do Bubau,
vinha um serão
a “ratar” no mais mau;
Ai esses tempos
Que não voltam mais!

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