terça-feira, 5 de maio de 2009

UMA RUA DA NOSSA BAIXA (2)







Em anterior apontamento falava da Rua da Louça ou Loiça, conforme referia no Diário de Coimbra (DC), em 30 de Maio de 1985, Mário Nunes, investigador, reconhecido defensor do património Coimbrão, e actual vereador da cultura do executivo da Câmara municipal de Coimbra.
Continuando então a citar o DC, “Permanecem as velhas enquanto as novas não se afirmam, havendo um período de transição, em que coexistem ambas, até que a moderna absorve a antiga, quando acontece o desaparecimento das gerações mais próximas. Por isso, na época do Tinge-Rodilhas, a partir de 1487, começa a escrever-se e a falar-se num novo topónimo, Rua do Caneiro. Este nome insere-se nos direitos reais, incluídos, geralmente nos forais e que no reinado de D. Manuel I, aquando da reformulação dos primitivos forais, vieram confirmar-se ou criar-se novos direitos para a Coroa. O Caneiro era uma reserva piscatória no Rio Mondego e noutros rios (atente-se na povoação, próxima de Coimbra, a Foz do Caneiro), que eram demarcadas por paliçadas ou estacas e cujo rendimento do peixe, ali pescado, revertia para a Coroa. Como a Rua Tinge-Rodilhas atingia o rio e terminava no Caneiro, veio a ser absorvida, toponimicamente, por este e passou a denominar-se de Rua do Caneiro, confirmada em documentos até 1562. Nos finais do século XVI, 1577, e século XVII, 1603 e na finta de 1613, a rua volta a alterar o topónimo, desta vez, para Rua da Cruz, provindo o nome da presença da Igreja e Mosteiro de Santa Cruz num dos extremos, embora venha a prevalecer também a Rua Tinge-Rodilhas. Este nome é popular e aquele é oficial.
O facto descrito é indesmentível já que após o ano de 1613, regressa o nome de Tinge-Rodilhas e dilui-se o de Rua da Cruz. Tinge-Rodilhas continua até 1845, aquando da feitura da planta geral desse ano. Concluindo, verificamos que a rua teve os seguintes topónimos: Tintureiros, Tinge-Rodilhas (duas épocas), Caneiro, Cruz, Loiça, Bordallo Pinheiro e, finalmente, Rua da Louça.
A rua recebeu “alteamentos” sucessivos durante vários séculos com o intuito de evitar as cheias do Mondego; alindou-se com o calcetamento de paralelepípedos, encheu-se de casas altas e bem equilibradas arquitectonicamente, sobretudo nos séculos XVII e XVIII, como podemos comprovar pelas fachadas das mesmas (aventais) e ornamentou-se com lindas grades de ferro no século presente (XX) e no anterior (XIX). Em 1958 foi ali instalada uma fábrica de gelados que veio afirmar a propensão da Baixa para a instalação da pequena indústria e do artesanato.

VER, HOJE, A RUA DA LOUÇA (30-5-1985)

Percorrer a artéria, hoje, desviando o olhar do chão e encaminhá-lo para os andares superiores dos prédios, é contactar uma realidade que passa despercebida à maioria da população. Logo à entrada, indo da Praça 8 de Maio, deparamos com a Casa Ganilho, um século a vender Ferragens, ornada de ferro fundido nas barideiras das portas e um varandim guarnecido de ferro forjado no último andar, culminando com trapeira sobre o telhado. No lado oposto, um prédio diferente, por ter um uma longa parede sem janelas, rematada na extrema por quatro pequenas aberturas com vidros (mini-janelas). A seguir, outra casa, airosa, sobranceira à rua, de azulejos e, mais além, outra com dois beirados sobrepostos. O número 15, com janela de avental, cobertas de cal e outras cortadas (que lástima) e os prédios nº 30 e 54, autênticas réguas compridas providas de pequenas aberturas, janelas, coroando com trapeira no telhado e esta com pináculo de barro. Mais além, as janelas de avental e guilhotina, sucedem-se. As grades de ferro multiplicam-se. Os prédios nº 35 e 58, em degradação, apesar de bonitos e característicos da época, século XVII, revelam nas lojas de fruta enterradas no chão, o “alteamento” sofrido pelo pavimento ao longo dos tempos. A roupa estendida a enxugar, as caras sujas de muitas casas e as ervas nos beirais, são sinais de um passado glorioso que teima, apesar de todos os crimes de lesa-património, permanecer e ficar entre nós.
Mais adiante, o prédio 86/94 mostra todas as janelas com avental e guilhotina, infelizmente despercebidos pela cal que as forra. O nº 100, em degradação, bem como o seguinte, ostenta um pequeno painel de azulejos do século XVIII, alusivo às Almas do Purgatório, com figuras simbolizando, a nosso ver, um Papa, um Bispo e uma pessoa do mundo, a arder nas chamas da purificação. Uma loja de artesanato vende toda a variedade de objectos, desde bilhas de barro a cestos de verga e a “bigigangas” para todos os gostos. Frutas variadas despertam a curiosidade e o apetite ao mais distraído dos passeantes. Um grande portão, largo, dá sequência para a Rua da Moeda, através de um pátio interior.
Pertença da Câmara, segundo nos elucidaram, serviu, em tempos relativamente próximos, de cocheira e de recolhimento. Os feirantes, os mendigos e os “sem eira nem beira”, encontravam nesta mansão, um tecto para os abrigar e umas cavalariças para recolher os burros, as éguas, os cavalos e os carros e carroças.
Mais portas enterradas, nº 55 e 57, mais guilhotinas, mais varandas rendilhadas, mais ervas de anos nos beirados, mais caleiras rotas e a cair, mais chaminés de pedra e cal a desafiar os tempos, podemos ver e admirar. Na faixa lateral das Olarias, prédios baixos em degradação, alternam com outros reconstruídos e a imitar uma profusão de estilos e épocas.
A Rua da Louça, uma rua muito antiga, mancheia de atentados ao património, em especial as lojas, absorve quase todo o género de negócios: pronto-a-vestir, calçado, relojoarias, rádios, artesanato, louça, ferragens, cervejarias, restaurantes, tabernas, fotografia, pássaros multicolores, frutas, lãs, profissões liberais e escritórios. Os reclames de bandeira ou adossados, serpenteiam a rua e mostram autêntico arco-íris pelas cores que apresentam. Transeuntes de todas as camadas sociais, param, olham, conversam, gritam, riem e compram. Os preços e os encontrões obrigam a jogar à defesa e a comprar depois de auscultar os vários preçários expostos. Um mundo de pessoas que utiliza a artéria, embora o troço Praça 8 de Maio ao Largo do Poço seja o mais (de longe) concorrido.”
(Mário Nunes, actual vereador da cultura da Câmara Municipal de Coimbra, in Diário de Coimbra de 30 de Maio de 1985)

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