segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

COMÉRCIO: UMA TENTATIVA DE, A PARTIR DO PASSADO, ADIVINHAR O FUTURO (1)






  Como já vem sendo hábito, o Rádio Clube de Coimbra pede-me que comente alguns temas. Hoje as perguntas que me foram propostas era se considerava que os consumidores iriam preferir as grandes superfícies em detrimento do comércio tradicional e, no seguimento da minha explanação, se acreditava que o comércio de rua teria futuro.
Para não maçar, vou transcrever o que disse em relação à segunda pergunta, ou seja, se acreditava que o chamado comércio de proximidade teria futuro. Embora, aproveitando o “escrever ao saber da pena”, contando um pouco de história, vou dizer aqui muito mais. Como é costume, e correndo o risco de ser uma melga, vou então esvoaçar sobre o comércio dito de tradição:


 Para melhor se entender, vou recuar até aos anos de 1950. Por esta altura o comércio estava todo implantado no centro da cidade. Coimbra industrialmente era uma cidade forte. Com imensas grandes indústrias, logo, por inerência, havia dinheiro para gastar, sobretudo numa classe média financeiramente possante, constituída sobretudo por industriais, advogados e médicos. A classe trabalhadora, tal como em todo o país, vivia com dificuldades. Os comerciantes estabelecidos, muitos deles que começaram como marçanos, eram pessoas esforçadas e muito exigentes para com os seus funcionários. À noite, para encerrar os estabelecimentos não havia hora pré-definida e para cada cliente que entrasse nas suas lojas exigiam aos seus balconistas que correspondesse a uma venda. Quando tal não acontecia, isto é, se o cliente não comprava, depois do freguês virar costas, o melhor que poderia acontecer eram uns insultos verbais, desde “camelo”, “incapaz”, “que não prestava nem para guardar porcos”. Porque o pior que poderia acontecer eram umas caneladas e até umas vergastadas que o patrão irado descarregava no seu “criado” de balcão. Pode parecer exagero mas era assim. E, como tal, o pobre empregado, diariamente, vivia dividido entre o pensamento “ai Deus queira que este compre!” e o sermão consequente em caso de falhanço. Só quem por lá passou sabe o esforço titânico que um marçano fazia para vender. Estas pessoas, para além de possuidores de uma argumentação demolidora eram uns “contorcionistas” natos e mestres na psicologia social. Um pequeno exemplo: um cliente queria um pulôver vermelho. O empregado, que era obrigado a saber toda a existência da casa onde laborava, sabia que não tinha aquela cor –tinha azul, amarelo e castanho-, então, com uma desfaçatez de fazer corar o mais púdico, de uma forma arrogante, sem grandes preocupações de delicadeza, numa espécie de ataque em frente, de tudo ou nada, abria logo as hostilidades ao interrogar o freguês desta forma: “vermelho?... Não faça isso! Primeiro, este ano não se usa essa cor; segundo, já viu o tom da sua pele (um pouco avermelhada)? A tonalidade ideal para si é o azul... olhe como lhe fica bem!” –encostando a camisola ao peito do cliente em frente ao espelho. Eram poucos aqueles compradores que resistiam a todo este charme de argumentação. Claro que devemos ter em conta que estamos falar de um cliente pouco esclarecido e pouco exigente. Isto foi assim até início da década de 1990. 
Embora, esclareça-se, mesmo assim tudo começou em 1974, com o 25 de Abril, porque até aí era muito pior.
Em virtude da Revolução dos Cravos os ordenados, por imposição legal, passaram de mil escudos para três mil e, como tal, havia dinheiro a “rodos”. De tal maneira era o poder de compra que não havia artigo para entrega imediata. Tudo se vendia. Até finais da década de 1980 foram anos loucos para o comércio de rua. Muitos foram os comerciantes em Coimbra que, nesta altura, enriqueceram de uma forma abrupta e desmesurada. Numa completa incoerência, chegavam a abrir várias lojas na mesma rua e exactamente com o mesmo artigo comum a todas elas.
Evidentemente que a economia do país tinha de pagar com juros este acto económico tresloucado. Se o Conselho de Revolução obrigou todas as empresas a triplicar o salário sem contrapartidas de aumento de produtividade, não é preciso ser economista para adivinhar o desfecho: aumento da inflação para vários dígitos, juros impensáveis e, o mais grave, falência de múltiplas empresas, sobretudo industriais. Só para se entender melhor, em 1982 os juros estavam a 38 por cento e postecipados à cabeça. Ou seja, quem, nesta época, teve a sorte de ser bafejado com um crédito –porque era muito difícil e só com grandes garantias-, tinha de deixar imediatamente os juros do empréstimo no banco. Para se entender melhor: aquele a quem foi concedido um empréstimo de mil contos (hoje 5.000 euros) a um ano, levava apenas para casa seiscentos e vinte contos (3.100 euros). Em face das taxas de juro de hoje, o que estou a contar parece uma anedota, mas é a mais pura das verdades.
Como já me alonguei vou ter de dividir este tema em capítulos, caso contrário nem um único leitor chega ao fim.

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