sábado, 20 de setembro de 2008

BAIXA: UMA CLIENTELA INDESEJÁVEL







Durante várias décadas, no Largo da Maracha, ali junto à loja do Cidadão, a tasca do Manuel Vasques fez história na Baixa da cidade. Os seus petiscos, servidos em mesa corrida por dois compridos bancos de pinho, eram famosos entre estudantes e futricas. A sardinha em molho de escabeche, os “jaquinzinhos” fritos, as iscas de cebolada e o bacalhau frito em pasta, eram constantemente solicitados por todos.
O seu vinho, saído das pipas, servido a copo, bem encorpado e apaladado, vindo dos lados de Rio de Galinhas, corriam por gargantas sequiosas, com a mesma naturalidade que os rios correm para o mar. Era rara a tarde que naquele recanto de boémia um qualquer introvertido, depois de bem aconchegado, não se transformasse num cantador afamado e capaz de fazer as tropelias mais inverosímeis. Lá no canto esquerdo, na parede, numa peanha de madeira, a imagem de nossa Senhora de Fátima, alumiada por uma pequena lâmpada, olhava para tudo isto impassível, com ar de desconto e serenidade. Como se dissesse: “coitados, com um grão na asa são capazes de tudo. O mais medricas, com um copo, torna-se um valentão”.
No outro canto, do lado direito, o “Zé povinho”, com a frase “Queres fiado Toma!”, não se sabe se gozando com a imagem da Virgem, se rindo daqueles figurões, fazia um manguito a tudo isto. Neste espaço de convívio popular, onde não faltava o relógio de capela a dar horas e meias, que quartos não havia, e o rádio a válvulas da segunda Grande Guerra, sempre sintonizado na Radiodifusão Portuguesa. Sobre as duas grandes mesas de pinho estavam sempre presentes o dominó e as cartas da sueca. Estes jogos eram a força motriz da convivência neste “santuário” do “bota-a-baixo”.
Há cerca de oito anos, já com a casa a entrar pelo cano do abandalhamento, pela decrepitude do imóvel e do dono, o velho patrono, o Manuel Vasques, morreu. Durante dois ou três anos o edifício esteve em venda, mas, devido ao elevado preço pretendido pelos herdeiros do velho taberneiro, demorou a ser alienado. Mas, como tudo na vida, quase sempre, a persistência acaba por vencer, mesmo nos negócios aparentemente impossíveis. A verdade é que o prédio foi vendido e há cerca de quatro anos foram iniciadas as obras, com todo o interior a ser derrubado, mantendo a fachada semi-protegida por uns esconsos tapumes de madeira. Segundo se consta, começaram por serem acompanhadas por técnicos do IPAAR, agora IGESPAR, e, ao que parece, surgiram vestígios históricos que retardaram em muito a obra. Segundo se diz também, o proprietário, que já adquiriu o edifício muito caro, com os resquícios arqueológicos a complicar, a obra tornou-se, economicamente, inviável. E há mais de três anos, foram interrompidas. Se foi assim ou não, não sei, pelo menos as escavações estão lá como testemunhas mudas.
Nestes três anos de abandono, junto à fachada, uma árvore já cresceu e é adulta, o tapume está semi-destruído, com uma abertura que permite a intrusão de quem precisar de um recanto urgente. Num painel é anunciado a sua venda. Dizem ali os mais chegados que quem liga para este número jamais é atendido.
Como nesta zona não há retretes públicas, aquele espaço vem mesmo a calhar. Como o negócio está mau paras as prostitutas e um quarto para uma “rapidinha” custa os olhos da cara, ora, assim sendo, aquele recanto está mesmo a jeito. Como a Baixa ainda não tem uma “sala de chuto”, enquanto não vem uma mais aperaltada, este espaço, por entre lixo, fezes e preservativos, vai servindo aos mais necessitados.
Quem não está pelos ajustes são os vizinhos. Dizem que os odores que de lá provém cheiram a tudo menos a rosas. Como se isso fosse pouco, também não gostam da clientela da sucessora tasca do Manuel Vasques.
Em surdina, interrogam-se, a quem podem apelar. Dizem que já solicitaram medidas de prevenção à autarquia mas que, para seu desespero, até agora nada. Se você, que lê este texto, puder fazer alguma coisa, não se “aquede”. Pratique uma boa acção. Vá lá, ajude estas pessoas.

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