quarta-feira, 27 de agosto de 2008

OS SETE ESPECTADORES DO APOCALIPSE



Domingo à noite, dia 24 de Agosto, no Teatro Messias da Mealhada, o cartaz anuncia a sessão para as 21,30: “Batman, o cavaleiro das trevas”.
À hora marcada, para início do filme, entrámos, eu e a minha esposa, e estranhámos a sala vazia. No Balcão éramos os únicos. Olhávamos para baixo, para plateia e não víamos viva alma. Especulativamente, em analogia, pensámos, bom a sala vazia tem a ver com o título do filme: trevas. Só podia ser isso. Veio o intervalo e, para nossa surpresa, afinal não estávamos sós, havia mais cinco espectadores.
E, o que é que isso terá de especial, perguntará o leitor, nos modernos multiplexes também não acontece isso? Acontece sim, é verdade. Mas há uma diferença, no cinema privado o sucesso de uns filmes, na sala ao lado, dão para outros menos concorridos. Chamo à colação o “privado” porque o Teatro Messias é de concessão pública. Foi a Câmara da Mealhada que o recuperou, e reinaugurou em 2001, gastando vários milhares de contos na sua beneficiação e, directamente, faz a sua exploração económica e financeira, através de, entre vários eventos, filmes em cartaz e teatro de revista.
E fez mal? Interroga-me você, meio desconfiado, tentando descortinar onde quero chegar. Não, não fez. Acho que fez até muito bem ao chamar a si o restauro e a revitalização de um edifício que, estando praticamente em ruínas, foi um marco histórico na Mealhada –inaugurado em 18 de Janeiro de 1950, por Messias Baptista, o seu grande impulsionador, para, sem fins lucrativos, servir culturalmente a comunidade Mealhadense, veio a encerrar definitivamente, já num estado decrépito em 1990.
A troco da sua posse a termo, salvo erro, durante cinquenta anos. Respondo ainda mais: ainda bem que o fez, ainda bem que adquiriu o cine-teatro do Luso, e oxalá outras autarquias do país seguissem o exemplo da cidade do leitão e, contrariamente a esta, com uma visão apenas economicista, deixem cair em ruínas os animatógrafos, aos poucos, quase deliberadamente, no esquecimento, daqueles cuja memória estão bem presentes como “Cinema Paraíso”.
Mas, então? Agora é que não percebo mesmo nada onde quer chegar, reclama você. Tenha calma. Eu explico. O executivo bairradino, ao adquirir uma sala de espectáculos, que é um marco importantíssimo na cultura, e custeando as obras de restauro, para uma cidade que de outro modo, através da iniciativa privada seria parcialmente impossível, está perfeitamente de acordo com o que se entende por “serviço público”. O que discordo é que a sua exploração seja deficiente e fique aquém do seu âmbito social. A autarquia, a troco de 3euros, por pessoa, possibilita a todos a facilidade de assistir a um filme actual e de cartaz. Lembro que em qualquer sala multiplex um bilhete custa 5.50euros. Acontece que, num desinteresse atroz, ou talvez não, as pessoas mesmo assim não vão. Então, como não se deslocam, numa sala para três centenas e meia de pessoas, com todos os custos inerentes, luz, pessoal, manutenção do edifício, amortização, nalguns casos, como neste que relato, o filme é projectado para os sete espectadores que referi.
Se, por motivos vários, as pessoas não vão, nesse caso, é preciso que a autarquia, continuando o espírito do “serviço público”, não se fique, de braços cruzados, apenas pela oferta do espaço a troco de uma módica quantia, à espera de quem não prometeu ir. Num gesto sócio-cultural sem discussão, e nos espectáculos que prevê pouca afluência, deveria oferecer bilhetes às juntas de freguesias para que estas os distribuam por quem entendam. Bem sei que logo haverá críticas de que é uma medida eleitoralista, mas o que é que é melhor, do ponto de vista cultural, sabendo que os custos fixos são os mesmos, será ter a sala vazia ou completa, mesmo que seja através de ingressos oferecidos? Penso que esta pergunta é de retórica, não oferecendo contestação.
Não nos devemos esquecer que o concelho da Mealhada é profundamente rústico, de uma ruralidade assente em séculos, e há pessoas, sobretudo reformados, que nunca entraram num cinema. Como não têm hábitos inculcados, evidentemente que a sua não convivência cultural, resultado da sua ignorância e desconhecimento, para eles é completamente desnecessária e despicienda.
Ora, mais uma vez chamando a atenção para o espectro de “serviço público”, estou certo que todos concordamos que criar hábitos nos cidadãos, de leitura, de frequentar museus, de dançar, assistir a peças de teatro, ir ao cinema, é realmente um investimento educacional, um serviço básico que cabe ao Estado despoletar.
O que leva ao desaparecimento de locais de culto da nossa memória é a sua não frequência pelos cidadãos, umas vezes porque não foram criados hábitos desde pequeninos, outras vezes, numa mimética de carneirada, vamos todos atrás de modas consumistas. Quando estes templos de memória encerram, ficando naquele espaço uma cratera, um fantasma de um edifício, um vazio de história que nos toca e fere, abrimos todos a boca de espanto: ahhhh! Que pena!

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