domingo, 13 de julho de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (25): UM SÉCULO DE VIDA



             

  Corria o mês de Setembro do ano de 1908 quando a aldeia de Barrô, entre a Mealhada e o Luso, foi acordada por um grito estridente de um recém-nascido. Perante um pai inquieto, de olhos com brilho de anseio e um rosto alagado em suores que lhe escorriam em bica pelo rosto abaixo, a parteira, com as mãos ensanguentadas, gritou para o progenitor do novo ser nascente: “é menina, é menina!”
 Acabava de vir ao mundo uma criança que nascera no mesmo ano, em que se dera o Regicídio, em Fevereiro, com a morte do Rei D. Carlos e o Príncipe Luís Filipe, constituindo este atentado o estertor de um sistema fragilizado e caduco pela ostentação de uma classe burguesa insensível e em desfavorecimento maioritário de um povo triste e sofredor. Cairia decrépito, dois anos depois, em 5 de Outubro de 1910 com a implantação da República.
  Esta nova mulher, concebida nos planos da morte do Rei e no fim da Monarquia, seria baptizada com o nome de Lucília Dias. Atravessou a 1ª Grande Guerra, de 1914 a 1918. Sofreu na pele, através da fome e da carência de bens elementares ao seu desenvolvimento, as primeiras turbulências do novo regime político republicano.
  No ano de 1929, com o mundo financeiro a abanar, através do “crash”, da queda, das bolsas mundiais e que daria origem à “grande depressão”, na igreja de Luso, com convicção firme, dava o “sim” a José Morais, “o homem mais pobre que havia na Vacariça”, uma aldeia muito próxima.
Em 1939, quando estala a 2ª Guerra Mundial, Lucília já tinha três filhos, duas raparigas e um rapaz. Uma delas morreu precocemente de uma doença rara e nunca diagnosticada.
 A senhora de quem falo foi sempre uma mulher de “armas”, feita pela sua vontade férrea e indomável cuja personalidade é formada em cenários duros de guerra. Não tinha vergonha de mergulhar as mãos na “massa”, como sói dizer-se. Colocava a mesma vontade no trabalho como qualquer um ao lazer. Tanto labutava no campo rijo e árido como em limpezas em várias casas. Mas havia um talento que viria a marcar muitos habitantes da freguesia de Luso: Lucília era uma excelente cozinheira.
Conversando comigo, lembra-se que cozinhou em muitas casas ricas até ao horizonte onde o sol se perde de vista. Fez muitas festas, muitos casamentos, e até chegou a ir, durante muitos anos, no verão, em colónias de férias do doutor Artur Navega, da Mealhada. O contrato era através de uma outra senhora de boa vontade –que um dia destes falarei-, também de Barrô, que levava as crianças mais pobres do concelho para a praia da Figueira da Foz. Esta mulher de bom coração, tantas vezes incompreendida, e que tanto bem fez aos mais carenciados, era, e é, a senhora Preciosa.
  Quando estalou a Revolução de Abril em Portugal, em 1974, Lucília estava, juntamente com a sua filha Natália, a empalhar garrafas e garrafões para várias grandes empresas vinícolas da região bairradina, como por exemplo as Caves Messias. Trabalhavam na sua oficina cerca de 24 pessoas. Hoje, num tempo que não tem tempo para memórias, só a sua Natália continua, como ícone, a mostrar uma arte em total desaparecimento.
 Se por um lado guarda saudades dessa época, por outro prefere os nossos dias. “isto hoje é uma maravilha, nem vocês sabem quanto!”, atira-me à “queima-roupa”, no meio de um sorriso escancarado de matreirice e com um brilhozinho nos olhos, intervalado com uma palavra obscena, tão apropriada e ditas com a mesma naturalidade com que se diz “bom-dia!”.
 Mas lembrando os tempos passados, endurecendo as linhas do rosto, referindo-se ao povo da aldeia, exclama: “é uma gente mesquinha. Bem podiam ser melhores do que são. Mas, paciência, é o que temos! Vê lá bem, continua a minha querida conterrânea Lucília, com a voz embargada pela dor, que há mais de 30 anos, quando eu mudei da religião Católica para os Evangélicos, praticamente toda aldeia deixou de me falar. Desprezaram-me completamente. Passavam por mim na rua e era como se eu fosse uma cadela. Lembro-me -já o meu querido “Zé” Morais tinha morrido, o meu homem, o meu querido homem!-, um dia, para matar a fome aos meus filhos, fui a casa de um grande lavrador para me vender meio alqueire de milho e sabes o que me respondeu a mulher do ricaço? Que fosse comprá-lo aos da minha religião. Somíticos de uma figa!” Exclama no meio de uma imprecação.
Continua a senhora Lucília, “mas olha, Deus não dorme –apontando com o dedo em riste para cima-, o tempo tudo cura. Acabaram todos por me vir pedir ajuda. Fui eu, sem vinganças ressabiadas, que lhes matei a fome. Acredita, dou-te a minha palavra”, profere esta frase, novamente, já no meio de um sorriso rasgado de orelha a orelha.
 Pois é! Como já viram estas palavras são de uma anciã muito querida que fez no último 19 de Novembro 102 anos. Se vissem a pele do seu rosto, parecia que tinha sete décadas. A sua lucidez era impressionante. Era impossível não gostar desta mulher simples.
Infelizmente a natureza, ou Deus para quem acreditar, levou-nos há dias a nossa humilde Lucília Dias. Onde quer que se encontre, acredito que esteja a sorrir. Teve um século de vida cheia de tudo. De coisas boas e más.
À família enlutada, nesta hora de perda, os nossos sentimentos profundos. Barrô para além de ver partir a pessoa mais idosa do lugar, perdeu uma grande mulher.


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