sábado, 12 de julho de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (24): O BÍGAMO

(Uma bonita casa de Barrô, muito bem recuperada)

Naturalmente, por volta dos fins da década de 1940, em consequência da 2ª Guerra, com o racionamento de víveres, Portugal vivia tempos de uma infinita miséria. Salazar, quer por força do seu princípio moral de que mais valia só que mal acompanhado, o “honrosamente só”, quer porque não entrara directamente no grande conflito bélico mundial, mantendo-se numa neutralidade duvidosa –se tivermos em conta a exportação de Volfrâmio para a Alemanha- não aceitara a ajuda no âmbito do Plano Marshal –este programa de recuperação Europeia, instituído pelos Estados Unidos da América (EUA) em 1947, consistia em ajudar a recuperar os países Europeus aliados, afectados pela grande guerra. Também conhecido pela doutrina Truman, presidente dos EUA, viria no entanto a tomar o nome do Secretário de Estado, George Marshal.
Então, se em todo o país a pobreza alastrava, é evidente que na minha aldeia, em Barrô, entre a Mealhada e o Luso, a situação não seria melhor. Embora houvesse uma meia dúzia de lavradores abastados, a maioria, trabalhando por conta de outrem, vivia no limiar da indigência. Era natural que muitos tivessem desejos de emigrar mas poucos teriam possibilidades financeiras e a coragem para partir rumo ao desconhecido, em busca de uma vida melhor.
Mas houve um homem que arriscou em deixar aquela terra de carências de tudo. Embora não estivesse no escalão dos mais pobretãos, estava apenas um pouco acima, tinha uma casa razoável, mas não deixava de fazer parte do mesmo clube de esfarrapados. Certamente, ou porque estava farto de tanta miséria, ou porque terá pensado que os seus descendentes mereceriam um amanhã mais sorridente e mais igual aos mais ricos da terra, decidiu partir. Não se sabe se o fez por aventureirismo, se por necessidade de um futuro a que julgava ter direito. jamais saberemos o que iria naquela cabeça com chapéu.
Chamava-se Manuel Rodrigues Vieira. A 19 de Março de 1950, depois de hipotecar a casa e ter contraído um empréstimo a um onzeiro (espécie de agiota que emprestava dinheiro a juros de 11%) de Vila Nova de Monsarros, juntou uns trapos numa pequena mala de cartão e planeou ir para África. Naquele dia solarengo, 19 de Março, hoje dia do pai, naquela casa junto à capela da aldeia, os gritos eram cortantes. Quem passava não ficava imune aos choros lancinantes da Arminda, mulher do Vieira, de quase trinta anos, entrecortados pela fome, misturada com lágrimas, dos seus cinco filhos, a maioria todos crianças. O mais novo tinha 3 anos: “paizinho, não nos deixes! Não nos abandones pai!”
Mas, se cada um de nós tem um destino marcado, acredite-se ou não, o Manuel Vieira achava que tinha de cumprir o seu e partiu para terras africanas de Angola.
A Arminda, com toda esta prole, ficou numa situação desesperada. Do seu marido nunca mais ouvira falar. Quase todos dias, olhando para o carteiro da aldeia, o Daniel, Arminda pensava para com os seus botões: “é hoje que vou receber uma carta!”. Mas essa missiva nunca chegou. Entretanto a sua filha mais velha, a Augusta, começou a namorar e casou com um rapaz que se viria a revelar o salvador daquela casa que era o refúgio de tanta gente. Um grande trabalhador e pessoa muito respeitada, ainda hoje, o José Maria, o Barbeiro, que em apontamento anterior já falei dele. Como o onzeiro, o agiota, ameaçava arrestar a casa por falta de pagamento, o meu amigo “Zé”, como é conhecido pelos amigos, pediu um empréstimo em seu nome, foi a Vila Nova de Monsarros e liquidou a hipoteca e juros num total de 526 contos. Com muita luta braçal, na labuta da agricultura, e nos tempos mortos a escanhoar barbas e a cortar cabelos, a vida foi-se encarregando de recompensar o “Zé” Maria Barbeiro e, aos poucos, a paz de espírito e o desafogo financeiro regressaram aquela casa da Arminda.
Num dia de Março, de 1976, a notícia correu célere em Barrô: “O Vieira, o Angolano, regressara a casa”. Mas, se este facto já por si só era notícia, calcule-se o que não diriam as “cuscas” do lugarejo ao saberem que ele trouxera uma mulher “cabrita” e apresentara-se à Arminda para que ela desse guarida aos dois. “Um escândalo, vejam bem ao que chegámos!”, vociferavam indignadas as mulheres do soalheiro, assim conhecidas na aldeia, por cortarem na casaca de qualquer um.
Como se deve calcular o Vieira viera com o mesmo com que partira, se exceptuarmos a mulher que vinha com ele, ou seja, uma maleta com meia dúzia de trapos. Como não estava divorciado da Arminda, ainda que moralmente ali não tivesse nada, nem sequer uma boa lembrança, legalmente a casa também lhe pertencia. E aí é que estava o problema. Como fazer a coabitação no meio deste ódio, adultério e bigamia? Mas lá se resolveu. O Vieira e a sua "segunda" ficaram a morar noutra casa, a dois passos daquela. Não se sabe muito bem como foram suportáveis os dois anos em que todos viveram na casa, inclusive a Isaura, a “cabrita” extra-matrimónio, mas a verdade é que até ao divórcio ser deliberado pelo tribunal foi assim.
Mesmo perante o meritíssimo, como o Vieira não tinha onde cair morto, o “Zé” Maria prometeu alimentá-lo até à morte. Este meu amigo barbeiro, com tristeza, ainda recorda o sogro, mesmo depois de tanto ser ajudado, a dizer ao juiz: “o meu maior prazer era não deixar cinco tostões a ninguém!”
Como quem não dá não recebe, o Vieira, depois do divórcio, partiu com a sua amante Isaura para Viseu e lá veio a morrer na mais completa indigência.

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