terça-feira, 3 de junho de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA: A CRIADA (8)


(IMAGEM DE UMA CRIADA DE SERVIR)

                 

  Até 1974, em todo o interior do país, era uso os lavradores mais abastados terem os seus criados. Hoje a palavra “criado” é unanimemente reconhecida como resultado de um tempo pouco respeitoso para quem trabalhava por conta de outrem. Vem do latim “creãtu”, que está associada a criar, mas também derivada de “creatura”, pessoa que depende de outra. Talvez por isso, ao longo dos séculos, a criada ou o criado tivesse relacionado uma subserviência endémica e fatalista, como se viesse ao mundo para servir o amo. Por outro lado, devido ao sistema de sociedade hierárquico, sem que ninguém se preocupasse com isso, tinha um entendimento iminentemente reaccionário, indecoroso perante a igualdade de oportunidades. Tinha acoplado a si um estigma de servir forçado, um espírito esclavagista, de escravidão. Numa palavra única, pela imposição de rótulo, era o modelo redutor da exploração do homem pelo homem.
Nos nossos dias ninguém se refere a um seu colaborador como criado, mas sim como funcionário ou empregado. Com a entrada da democracia, até a palavra “serviçal”, que nada tem a ver com “criado”, se tornou abominável e caiu também em desuso. Como todos sabemos esta dignidade reconhecida ao trabalhador só foi implementada com o 25 de Abril de 1974, constituindo matéria fundamental da Constituição Portuguesa de 1976.
 Em meados do século passado, e seguindo a tradição feudal, era vulgar, homem ou mulher, irem trabalhar ainda crianças para casa dos “senhores”, onde lá casavam. Em muitos casos, após o enlace, os dois consortes continuavam a viver num anexo à casa do “patrão” –mais no sentido de “dominus”, dono, com veneração-, lavrador abastado.
Estes criados eram “pau para toda a colher”, tanto cuidavam das terras, como dos imensos animais utilizados como mão-de-obra na agricultura e na alimentação, como, por exemplo, bois e vacas, dezenas e dezenas de galinhas, coelhos, cabras, ovelhas e imensos porcos para matança. Sem horário laboral nem folga semanal, ainda cuidavam da limpeza da casa e de todas as necessidades dos seus patronos.
Embora pouco usual, mas havia casos em que alguns grandes proprietários que não tendo filhos, em reconhecimento de uma vida de servidão e lealdade, vieram a testar os seus súbditos com toda a sua imensa fortuna.
  Depois desta resenha histórica, vou falar de uma serviçal muito especial que trabalhava na minha aldeia, em Barrô, em casa de uma família abastada, por volta do início dos anos de 1960, o senhor Matos. Curiosamente, ainda também familiar afastado, por laços consanguíneos, do meu pai.
  Esta “criada de servir”, a Cremilde, que, salvo erro, goza de muito boa saúde e reside em Lameira de São Geraldo, uma povoação próxima, era uma mulher extraordinária. Embora nova, talvez à época com vinte anos, tinha uma alegria contagiante. Era de uma vivacidade e esperteza extraordinária. Muito simpática, e, ao mesmo tempo, muito liberal e fora daqueles convencionalismos bacocos próprios daquele tempo. Era como se aquela rapariga, em pleno atraso de meados do século XX, pertencesse ao século XXI. Como se todos estes atributos não chegassem, era uma mulher linda. Era pequenina, tipo “mignon”, um torrãozinho de açúcar, e de cabelo curto. Os olhos da Cremilde eram profundos e a pele era de um moreno cálido que apetecia afagar. A compor esta imagem de perfeição humana, umas ancas roliças, não exageradas, e uns pequenos seios firmes. Mas o que mais impressionava era a sua animação permanente, o seu espírito inquieto. Apetecia tomá-la nos braços e saborear aquela vida resplandecente que, como graça divina, saía dela como torrentes de água pura.
Para mim, criança nessa época, a Cremilde era a esperança e, ao mesmo tempo, a frustração. Pelos seus estridentes rasgos de exuberância, tão depressa parecia oferecer o céu, como, de repente, sem se saber porquê, certamente porque detectasse umas intenções não permitidas e para além das suas limitações impostas, tornava-se turbulenta, cheia de nuvens negras, deixando qualquer homem desnorteado. Era essa ambiguidade que desconcertava. Lembro-me de o “Pinhão” – um estroina malandrote, um libertino que andava sempre todo aperaltado e viria a suicidar-se, e que em próximo apontamento falarei dele- andar à volta da Cremilde, como abelha a zumbir em torno de uma flor viçosa e procurando o seu pólen.
  Um dia, no início da década de 1960, em Janeiro, por altura da festa anual da terra, em honra do mártir São Sebastião, no bailarico de concertina, que nessa altura era feito em frente à casa do senhor Lino, ao fundo da povoação, por ter maior espaço que o terreiro da Capela, um cigano, de um grupo de dois ou três, apercebendo-se da rara beleza da Cremilde, foi pedir-lhe para dançar. Esta, que não era de hesitações, certamente porque não gostou da sua cara, evidentemente que negou. Aquele, provavelmente habituado ao seu estatuto de temor, insistiu, chegando à má-criação. A Cremilde não foi de modas e… paf!! Deu-lhe um valente sopapo. Poderemos facilmente antever o olhar de surpresa estampado na cara do homem. É mais que certo não se ter enterrado pelo chão abaixo porque não dava. Vai daí, como gitano conquistador não levava desaforo para casa, tocou de puxar a rapariga pela força. O povo ao ver a violência em perspectiva sobre a mulher, juntou-se e toca de chegar a “roupa ao pelo” aos descendentes de leste. Ao verem-se acossados, antes que se fizesse tarde, mais não fizeram do que dar ao slide. Porém, no espaço de fuga de 100 metros, entre o fundo da aldeia e o largo da Capela, anavalharam umas quatro pessoas que nada tinham a ver com o assunto. Iam tranquilamente a passar. Um deles, o senhor Francisco Rocha, já falecido, ficou com marcas para o resto da vida, e, enquanto vivo, nunca mais deixou de coxear.
                                                                                 





     

                                                                                 


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