quarta-feira, 28 de maio de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA: O MEU FORNECEDOR DE BRINQUEDOS (3)






(OS MEUS LIVROS ESCOLARES NA DÉCADA DE 1960)

     

 Como a maioria dos habitantes da povoação de Barrô, os meus pais eram muito pobres. Como quase todos, viviam de uma agricultura de subsistência. Lembro-me de o meu pai contar que o primeiro vinho que fez foi num pequeno balde de madeira. Os bens alimentares, como a batata, tubérculo essencial nesse tempo à alimentação familiar, o milho e o trigo, eram semeados em terras de arrendamento. Na nossa velha e pobre casa, onde, em dias invernosos, era preciso estar de guarda-chuva aberto para não ser atingido pelas goteiras de chuva. As grossas paredes exteriores eram em pedra, mas o interior, quase amplo, tinha uns tabiques de “enchaimel” –técnica de construção rudimentar que consistia em revestir uma parede de madeira com barro ou massa de cimento -nas duas únicas divisões em forma de quarto. Um, era dos meus pais e outro, cheio de uma amálgama de pequenos objectos, era ocupado pela minha avó paterna, já anciã. Sei hoje, sofria da síndrome de Diógenes, que consiste na exagerada acumulação de objectos sem valor. Neste primeiro-andar, o chão era de madeira, calcorreados por uns quantos buracos enormes, por onde, através deles se podiam ver os animais no rés-do-chão e tomar a qualquer hora o odor do estrume fétido. Já se pode calcular a promiscuidade zoológica que proliferava naquela casa, onde as pulgas eram rainhas e senhoras de todo o espaço ocupado pela família.
  As minhas roupas eram compradas, na feira, com vários anos de antecedência, como quem diz, tinham de acompanhar o meu crescimento. À medida que eu ia crescendo, as calças, adquiridas uns anos antes, iam sendo acrescentadas com mais uns retalhos de tecidos de outras, no comprimento, na largura, e mais uns fundilhos no rabo, ou seja, eram umas calças para a vida.
  Brinquedos comprados, nem pensar! Não havia dinheiro para tais luxos. Até entrar para a escola primária eu era produtor e consumidor ao mesmo tempo. Os carros e barcos eram feitos da casca do pinheiro (carrasca). Como é um material muito dúctil era fácil de trabalhar. Um outro brinquedo que usava era a fisga. O elemento principal era recortado de um ramo de árvore em forma de Y, e as extensões elásticas eram cortadas de uma câmara-de-ar de bicicleta. Este pequeno brinquedo, mortífero para a passarada, era o mais usado. Quando alguém me oferecia um costelo (ou costela) –uma pequena armadilha para, através de isco, apanhar aves- então lá ia para as terras em redor tentando apanhar um pássaro.
  Quando entrei para a escola primária, em 1963, na Lameira de São Pedro, que dista cerca de cinco quilómetros da minha aldeia, então com 7 anos de idade, se não era o mais pobre, estaria no grupo dos mais carenciados. Como todas as crianças do lugarejo onde vivíamos íamos a pé, fizesse chuva ou sol abrasador. Se a minha roupa era de indigente, o calçado não era melhor. Lembro-me de no inverno usar umas “chancas”, espécie de alpercatas com rasto de madeira, e no verão usar umas sandálias de plástico. Se a minha paupérrima forma de vestir já constituía um óbice para me sentir inferiorizado e de me auto-excluir do restante grupo de miúdos, como se fosse pouco, eu chegava à escola completamente marcado, sobretudo no pescoço, de ferroadas de pulgas. Tudo indicava “que o meu sangue era bom”, segundo o aforismo da época, talvez para desculpar o ataque descarado dos animaizinhos minimalistas. Em boa verdade, para estes pulantes, durante todas as noites, eu seria um festim gastronómico.
  Como a natureza é pródiga com todos os seus filhos comigo também o foi. Cedo verifiquei que a única forma de sair da cauda do pelotão, e de me tornar notado, era fazer das minhas fraquezas forças. E a única forma de o conseguir era tentar ser o melhor ou estar entre os melhores de todos na minha classe. Então estudava, estudava sem parar. Na sala de aulas dos rapazes –nesse tempo os géneros estavam separados, de um lado o masculino e do outro o feminino- eu estava sempre atento, mesmo na matéria das classes mais avançadas. Passando a imodéstia, era um aluno muito aplicado e, sobretudo, na aritmética dominava. A resolução de problemas era o meu forte.
 Havia na minha classe um miúdo chamado Rui, mais alto do que o comum. Este puto andava sempre bem vestido e trazia sempre bons brinquedos, como por exemplo um carro de polícia, um “carocha”, que acendia e apagava e até fazia “ti-no-ni”, e provocava a inveja de quase toda a turma. Como a natureza é boa e equitativa, normalmente faz uma distribuição e nunca dá tudo só a uns, também neste caso do Rui assim aconteceu. Se, certamente, por esforço dos pais que lhe davam um bom viver material, intelectualmente o rapaz não era muito esperto para os números. Provavelmente seria forte noutras áreas, mas, então, na aritmética era uma nódoa. Daí a pedir-me ajuda para os problemas foi um passo. Estavam lançadas as sementes do negócio para a troca directa, e para eu me tornar empresário. Eu ajudava-o nos problemas e ele em troca pagava-me em géneros. Foi assim que tive o meu primeiro carro de bombeiros e, naturalmente, o “carocha” Volkswagen da polícia.
Esta história poderia ficar perfeitamente por aqui, e até seria um bom final, mas, calma, o epílogo vem a seguir.
  Nesse tempo tínhamos aulas ao sábado de manhã. Durante a tarde ficava um grupo de quatro alunos para varrer e dar uma limpeza geral à sala de aulas. Numa das muitas em que me calhou, juntamente com três colegas onde estava incluído o Rui, um de nós, já não lembro quem, reparou que a gaveta da secretária da professora, a Dona Odete, estava aberta. Ora, nesse tempo, as soluções dos problemas, que vinham em separata nos cadernos de aritmética de Pedro de Carvalho -autor de grande parte destes livros escolares- eram entregues em mão à professora, que imediatamente as escondia na gaveta do móvel de escrivaninha, junto ao quadro negro, para evitar que os alunos tivessem conhecimento antecipado da resolução dos problemas.
  Quando um do grupo reparou que a gaveta estava aberta, certamente por esquecimento da Dona Odete, foi um grito de Ipiranga, misturado com efusiva alegria: “estão aqui as soluções!”. Num ápice, em sôfrega correria, estávamos todos a copiar os resultados para uma folha branca. Na semana seguinte, estranhamente para a mestra, no conjunto dos quatro, todos acertavam no resultado. Se três conseguiram resolver, elaborando uma solução final de acordo com a copiada nas folhas da gaveta da papeleira, havia um aluno, o Rui, que, “atamancadamente”, cozinhou os resultados à sua maneira. Estava aberta a brecha para a descoberta do “copianço”.
À frente de todos o Rui foi chamado ao quadro para resolver o problema. Não o soube fazer. “Como chegaste a este resultado?”, interrogou a Dona Odete já meia desconfiada, e ao mesmo tempo que ia afagando e preparando a “menina dos cinco olhos” –nome dada à régua castigadora com cinco furos na ponta arredondada. Nós, os restantes três do grupo, a pedir a todos os santinhos -e eu ainda mais a rezar às Alminhas- que o Rui não se desmanchasse, mas, debalde, confessou. Foi uma orgia de reguadas para os quatro do surripianço aritmético. Uma lição para a vida, de que não há mentiras eternas, e uma vergonha perante os restantes alunos da classe.





              

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