segunda-feira, 6 de agosto de 2007

O ABROLHOS E O ENCERRAMENTO DA CENTRAL

Hoje é 2ª feira. Vou falar com o Almerindo Abrolhos. De certeza absoluta que depois de um fim de semana, deve ter imensas novidades para me contar. Vou então, em direcção à Praça 8 de Maio, ao Café Santa Cruz, o "poiso-feliz”, ou “porto de abrigo” do meu amigo Abrolhos.
Ena pá! Tanta gente! O que é que se passa aqui?! Ah…estou a ver ali a Televisão. É a RTP1…é o programa “Praça da Alegria”. Daí toda esta assistência. A locutora pula de cara em cara, tentando obter uma declaração. Todos se esforçam por aparecer no pequeno écran. Individualmente, todos procuram os quinze segundos de fama. Aquela senhora, está a falar. Olhem para a cara dela! Reparem no ar formal, como se estivesse, pelos trejeitos do rosto, a dizer: “mamã estou aqui! Sou eu mesmo mamã! Estou na televisão!”
A esplanada do Café está repleta. Aposto que o Abrolhos não está lá. Ele detesta magotes de gente. Está ali uma pessoa que conheço. Vou perguntar-lhe se viu o Almerindo.
-Bom dia, estás bom Armindo? Desculpa lá, viste por aqui o Abrolhos?
-Vi-o, há uma hora, a entrar na Central, aquele Café encostado ao Nicola, ali à frente, na Rua Ferreira Borges, estás a ver onde é? –interroga-me o meu amigo.
-Claro, pá! Quem não conhece a “Central”, um dos mais emblemáticos cafés da cidade –respondo enfaticamente.
Deixo todo aquele rebuliço da Praça 8 de Maio, ao som do Toy, com o seu refrão “perdidamente apaixonado”. Enquanto não chego à Central, vou pensando na canção do Toy. Engraçado, o amor é como a felicidade, todos corremos atrás deles, como um horizonte perdido no espaço visual. Quando encontramos qualquer um deles, como invisuais, não os reconhecemos, e como indigentes carenciados, continuamos repetidamente à procura. É como se, obsessivamente, precisássemos desta utupia.
Enquanto vou caminhando, lembro-me do Abrolhos. Um ser tão especial. Sempre bem disposto. O facto de estar desempregado há mais de cinco anos não modifica a sua disposição, antes pelo contrário. E agora, parece-me, creio que o seu casamento longo está atravessar uma grave crise. Nem mesmo assim perde a sua mordacidade. Parece que qualquer dissabor, por maior que seja, tem um efeito ejector na sua alegria.
Bom, estou a chegar ao Café Central. Vou entrar. Lá está o Abrolhos. Sentado ao canto, junto às casas de banho. Ele escolhe sempre um sítio onde possa ter uma panorâmica geral de tudo o que se passa à sua volta. Como sempre, está impecavelmente vestido. Com o seu pólo Califa, as suas calças vincadas –engraçado, nunca vi o Almerindo de calça de ganga- e os seus inconfundíveis sapatos de verniz, das Sapatarias Romeu. Olho à volta. O café está praticamente cheio. É quase tudo gente de mais de meia idade. Essencialmente senhoras, possivelmente reformadas, todas apinocadas. E um pormenor engraçado: duas ou três senhoras têm uma cadelinha, ou cão, no regaço. Parecem que afagam um bebé, tal a forma carinhosa como o apertam contra o peito. Há cães com sorte, penso para mim…
-Bom dia, Abrolhos! Hoje mudaste –sublinhei o “mudaste” a lembrar o anúncio da televisão- de poiso –perguntei, dividido entre a interrogação e a constatação.
-Mudei, “meu”, hoje a Praça 8 de Maio está impossível! Estes parolos parecem que nunca viram a televisão. Parecem macacos. Até me enerva esta pacovice barata –responde o Abrolhos.
-É pá, tenta ver as coisas de outra maneira –replico, sem grande convicção- afinal, se atentares, a televisão raramente fala do que se passa aqui, ou vem à cidade. Apesar de ter aqui um departamento, raramente foca a urbe, é como se não existisse. O país está dividido em Lisboa e Porto e o resto é mesmo paisagem.
-Ó “meu” talvez tenhas razão, mas que embirro com isto embirro, pronto! –replica o Abrolhos.
- Vamos mudar de assunto –opino- conta-me as “últimas”. De certeza –eu conheço-te- não vieste a este café apenas porque te enerva o pacovismo das pessoas. Estou errado?
-Ó “meu” tu surpreendes-me! Às vezes chego a pensar que és presciente….
-Sou quê? Estás a insultar-me… Abrolhos? Interrogo, ampliando uma cara de chateado à brava.
- Não, “meu”! “Presciente” quer dizer adivinho…
-Ah…bom! Fico mais descansado, pensei que me estavas a insultar. Respondi com ênfase.
-Realmente, “meu”, estou aqui por solidariedade para com este Café, que regurgita o nosso passado e faz, intrinsecamente, parte da nossa memória colectiva…
-Espera aí! –interrompo abruptamente o Abrolhos- não me digas que é mais um Café que vai fechar? Estou a ver! Mais um “pronto a vestir”! Depois do “Arcádia e da “Brasileira”, é mais um. É pá, não posso crer!
-É verdade, “meu”, infelizmente! Li no Jornal “Campeão das Províncias”. Ó “meu” estou em choque, isto é um sítio curtido. Não há outro igual. Se encerrar é mais um pouco da nossa história, um pouco de nós que se vai –declama o Abrolhos, com uma tristeza nos olhos que fazia dó.
Claro que eu sei que a sua tristeza advém, essencialmente, da falta que ele vai sentir daquelas “cotas” todas aperaltadas, e que, como passagem de modelos, diariamente, posam na “Central”. Com o seu decote pronunciado, como se estivessem a reavivar nos homens um deleite ultrapassado, e sua saia, puxada intencionalmente para o meio das coxas.
- Ó pá, tens razão, mas o mercado é dinâmico, e, naturalmente, uns nascem e outros morrem –tentei consolar o Almerindo.
-“Meu”, este espaço é curtido, faz-me falta, é um candeeiro, na noite escura, da cidade, que se apaga. É mais um que se vai.
-Ó “meu”, paga-me aí o café que me esqueci do dinheiro em casa -levanta-se, vai-se embora, e deixa-me a falar sozinho.
Como sempre fico sem palavras perante o atrevimento do Abrolhos…

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