quarta-feira, 8 de agosto de 2007

O ABROLHOS E O ARRENDAMENTO URBANO



 Ontem não estive com o Almerindo, o Abrolhos, estão a ver quem é, não estão? Já vos falei dele. É um tipo bestial –não seguindo o étimo da palavra, mas no sentido de um bacano; um tipo porreiro. É um fulano como não há igual. É do melhor. Podemos considerá-lo um cromo? Podemos sim senhor. Mas é um cromo de luxo, não daqueles vulgares, que vinham nos rebuçados, lembram-se? Eram de personalidades várias, como os jogadores de futebol, por exemplo. 
O Abrolhos é uma bandeira içada no alto de uma montanha. Onde estiver, pela sua imponência e solenidade, é impossível passar despercebido. Marca um território. O Almerindo tem um carisma particular, uma espiritualidade própria, um “feeling” para tudo o que o rodeia. Confesso que às vezes chego a invejar este homem. Sempre bem-disposto, mordaz, consegue fazer-me rir, pelas suas piadas originais, e, sobretudo, possui uma qualidade que considero sublime: consegue rir de si próprio. É um “coimbrinha” que, mesmo sendo naturalmente hipócrita, no sentido de enganador de conveniência, consegue, embora, sempre, pelas costas, dizer as verdades. 
Gosto dele! Que querem? Adoro tomar a “bica” com ele na esplanada do café Santa Cruz. Bem, desculpem lá, mas vou ter com ele. Vou saber as últimas novidades. Lá está ele, sempre bem vestido como o camano. Vou-me aproximando. Ele está muito introspecto a ler um papel, parece uma carta.
-Bom dia, Abrolhos. Estás bom? É pá, desculpa, que ontem não pude vir cá…
-Ó “meu”, isso não é para nós! Vens quando puderes. Sabes que gosto de conversar contigo -interrompeu-me com seu jeito mordaz.
-Ó pá, então que contas? Novidades? Estou a ver-te aí a ler, completamente entrosado, não me digas que recebeste uma carta de alguma admiradora!? –interrogo, vendo que ele lê, com muito interesse, um papel manuscrito.
-Não “meu”. Apesar de que até gostava. Quem me dera a mim! ando a atravessar uma crisezita no meu casório. Agora que falas nisso…bem precisava de levantar a minha auto-estima…
-O quê? -interrompo-o, intempestivamente. Levantar a tua auto-estima? Tu estás a brincar comigo, não estás, ó Abrolhos? Tu és um sobreiro velho que nunca se abate…
-Isso é o que pensas, “meu”. Quantas vezes rimos para não chorar. Enfiamos a máscara sorridente e passeamos por aí, como se prestássemos um serviço aos outros. Andamos no tempo como se vivêssemos em função deles. Como se fôssemos aquilo que eles querem que sejamos –soletra o Abrolhos enfaticamente, como se estivesse mareando num mar de filosofia.
-Ó Almerindo, desculpa lá, nem te estou a conhecer. Vamos mas é mudar de conversa, pá! Responde lá, afinal, que carta é essa que estás a ler. Foi essa missiva que te deixou assim? –interrogo com uma acutilância quase incomodativa.
-Ó “meu”, é uma carta de uma inquilina para um senhorio. Ela é arrendatária de um terceiro andar, aqui na baixa, em muito bom estado de conservação. Sabes quanto paga?
… (fica a olhar para mim, à espera da resposta).
-Ó pá, não imagino, mas tendo em conta que as rendas são muito baixas…deixa ver, deixa ver... deixa-me pensar…talvez 100 euros –alvitro, quase a jogar um número para o contentar.
-Ó “meu”, é vergonhoso, isto. Ela paga cinco euros e vinte cêntimos de renda mensal. Tu já viste este abuso de direito, “meu”? Ainda por cima com exigências, como estou a ler aqui?! Tu já vais ler que eu já te passo a carta. Ó “meu” eu moro na Baixa… –a cara do Abrolhos está mesmo indignada, está franzida de dureza. Queira Deus que não lhe dê uma qualquer "solipampa".
-Ó pá, se calhar essa inquilina tem mais de 65 anos –tentei amenizar o clima de indignação do Abrolhos.
-Ó “meu”, tem! Mas a idade não pode ser -não deveria ser- condição "sine qua non" para coarctar o legítimo direito ao proprietário de aumentar as rendas. Por isso é que tu vês esta miséria de abandono e mau estado dos prédios aqui na Baixa, e em todo o país. Isto é transversal, infelizmente.
-Mas, espera aí, ó Abrolhos, eu não percebo muito disso, mas não houve, no ano passado, alterações ao código de arrendamento? Até lhe chamaram Novo Regime de Arrendamento Urbano? –interrogo, com desmesurado interesse. Agora a conversa está a caminhar bem.
-Houve sim,”meu”! Mas foi como se não houvesse! Foi simplesmente uma operação de charme, de cosmética. Sabes “meu”, como se fosse a Lili Caneças, nova por fora, mas por dentro completamente esclerosada e anacrónica.
-Então mas não teve efeitos práticos nenhuns? –interrogo.
- Praticamente nada! Num universo de 390 mil contratos, apenas 70 foram actualizados. Isto é um descalabro para as cidades. E repara que já passou um ano desde a entrada em vigor do novo regime –refere o Abrolhos.
-Mas porquê? –interrogo,
-Ó “meu”, porque está tudo mal. Uma lei para ser justa e equitativa tem sempre de ter em conta os direitos e as obrigações, harmonizando os interesses das partes conflituais a quem se destina. Ou seja, como neste caso, inquilinos e senhorios, aqueles são vergonhosamente favorecidos e estes, os proprietários, continuam a serem tratados como se fossem capitalistas ricos, como neste caso desta carta. Isto é como se, estes, tivessem de subsidiar os reformados, substituindo-se ao Estado –explica-me o Abrolhos, com ar solene, como se fosse um professor de direito.
-Mas, diz-me, com esta lei complicaram tudo, foi? –interrogo
-Ó “meu”, completamente. Só para entenderes, criaram as CAM (Comissões Arbitrais Municipais), no entanto, num universo de 308 Municípios, apenas 27 foram até agora constituídas. E repara já passou um ano –continua o Abrolhos a explanar.
- Mas, diz-me, pá, essas Comissões “não-sei-de-quê” vêm resolver alguma coisa? Pergunto, assim como “naquela coisa”.
-Nada, pá! É uma armadilha para os proprietários. Quem pedir uma avaliação está “lixado”, é feita a reavaliação das matrizes dos prédios e o novo aumento de renda não dá sequer para pagar o IMI (Imposto Municipal sobre Imóveis) –retorque o Abrolhos, sempre acompanhado de gestos com a mão, como se estivesse a dar uma aula.
-Ó pá! Deixa-me ler essa carta da inquilina para o proprietário. Deixaste-me curioso – solicito em tom neutro.
-Toma “meu”! –entrega-me a carta na mão. Vou começar a lê-la:


“Coimbra, 22 de Julho de 2007


Maria Apaniguada Malempregada Berlaitada


“Inquelina” do 3º andar do prédio sito na “Rua da má-língua”, nº4-3ºandar Coimbra, vem por este meio relembrar aos proprietários Senhor António Calça Rota e mulher, digo relembrar porque no mês de Novembro 2006, foi informado que havia infiltrações de água provenientes do mau estado do telhado e, assim como viu, e disse-me que precisava do telhado ser novo, e que eu tinha que esperar.
E como se está no verão, desde já agradeço que mande fazer as devidas reparações no telhado, porque estragos no recheio mobiliário, e bem assim como no tecto (isto é que fica por debaixo das telhas) e objectos partidos no arranjo do telhado ser pagos e arranjados.
Outra coisa também para ser reparada é a canalização da água, que não está em muito boas condições.
Agradeço que me avisem antes das obras, para eu poder acautelar as minhas coisas.
Que não seja, como em tempos recuados que não me avisaram, fizeram o que quiseram; era água por todos os lados e lixo.
Há outra coisa ainda:
As obras nos telhados tem que ser rápidas, e seguidas. Não se pode
arranjar dum lado e passados 15 a 20 dias arranjar a outra parte que falta.
Sem outro assunto de momento subscrevo-me atenciosamente.
(Maria Apaniguada Malempregada Berlaitada)


-Ó Abrolhos, isto é de mais! Realmente temos aqui uma casa bem arranjada, como quem diz, mal desgraçadamente –refiro, abanando a cabeça, para cima e para baixo e franzindo o sobrolho. Mas, há uma coisa que me está a espicaçar. Tu moras na Baixa, és inquilino e estás tão contra os inquilinos?
- Olha “meu”, conheces-me, eu não posso com injustiças! Sempre fui assim, desde que me conheço –refere o Almerindo, levantando o queixo com grande aprumo.
-É verdade, pá! Eu conheço-te! E por te conhecer bem é que te pergunto: quanto pagas de renda?
-Ó “meu”, não confundas as coisas! Já estou na minha casita há 25 anos. E mais: quando fui para lá a renda era uma fortuna. Além de mais sou eu que tenho sempre pintado tudo a expensas minhas…-responde o Abrolhos um bocado para o irritado.
-Está bem, pá! Mas quantos pagas, afinal?
- Ó “meu”, pago 50 euros. Mas para o estado da casa é de mais – responde divagando como se não falasse para mim.
Como sempre fico de cara à banda com as respostas carregadas de solenidade e justiça do Abrolhos…

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