domingo, 10 de junho de 2007

A QUEDA DO MURO DA INDIFERENÇA

A QUEDA DO MURO DA INDIFERENÇA
Não sei se já alguém pensou nisto mas, para mim, os hospitais são uma espécie de “terra de ninguém”, aquela extensão indefinida que medeia os contendores de uma batalha. Neste caso, estas casas da doença, são a fronteira que divide a vida e a morte. Aqui, neste espaço, inimigos assumidos de várias décadas, ou simplesmente de opção discriminativa, entreajudam-se, dão abraços, largam sorrisos e dão as mãos.
O meu tio, quase com oito décadas, sempre vendeu saúde. Nunca conheceu a doença. Homem dividido ente a cidade e o campo, é neste que a sua alma vagueia livremente por entre silvados e penedos. Desde sempre, que se conhece, se lembra de beber o seu copinho de vinho, isto é, normalmente só recorda o primeiro, os outros, de fila indiana, lá seguem o primeiro. Ou seja, seguiam, agora está internado no hospital, provavelmente, com uma cirrose hepática. Está mal, muito mal mesmo. Posso afirmá-lo, sem peias, infelizmente, já vi este filme num cinema muito perto de mim, cujos actores, já desaparecidos, eram, também, gente ligada a mim por laços de sangue.
O meu tio está internado numa enfermaria onde, também doentes, estão, um preto, um cigano, e um ancião que permanece de boca aberta e os únicos movimentos perceptíveis notados são um “roncar” permanente, de quando em vez entrecortado por um estertor que faz tremer a cama toda e mostra que ainda vive. É evidente, pelo quadro, nota-se que espera a chegada da sua hora, como sói dizer-se. Curioso, como exceptuando, o ancião, todos falam entre si sem qualquer espécie de restrição cultural. Ali, naquele pequeno espaço, as diferenças são diluídas e esfumam-se como o nevoeiro perante os raios solares. Todos gemem, todos apertam a barriga na mesma expressão de dor. Reparei que são todos já entradotes nos “entas”. Esta enfermaria, que poderia perfeitamente ser uma antecâmara da morte, é, no entanto, pela cordialidade, pela amizade, pelo respeito pela dor do outro, uma lição de vida. Todos sabem o que os espera, apesar disso, parecem menos preocupados que os familiares. Mesmo quando eu, numa mentira complacente, refiro que serão mais uns dias e depois retornarão a casa, qualquer deles, olhando-me bem no fundo dos meus olhos, fazem-me notar que vale mais estar calado. E eu, meio embasbacado, vou tentando dizer algo com graça que, por mais esforço que faça…não colhe graça.
A filha do meu tio, num chorar copioso, acusa os enfermeiros e médicos do seu descarado laxismo. O marido, entre o abrupto e a incompreensão, admoesta-a e faz-lhe notar que assim não vai lá, o melhor é ser simpático, sempre colhe mais. A neta e o marido optam por uma posição intermédia, não culpam, antes pelo contrário, é o fim de vida e quanto a isso…paciência.
A minha tia não pára de chorar e, em frases entrecortadas, interroga sem fim: “O que vai ser de mim? Antes fosse eu primeiro…porque não me leva Deus a mim…?”
No outro canto, o negro e o cigano, reparei que, juntamente com os familiares, todos riem como bandeiras desfraldadas ao vento, como se ali houvesse uma festa, e todos estivessem a comemorar o pouco que lhes restará de vida.
Naquela enfermaria, muitas lições devida retirei, mas o melhor estava para vir, para me demonstrar que ali, homens e mulheres, independentemente dos seus credos, cores, ou classes, todos sentem o pulsar da vida como o factor mais importante da existência e mesmo os seus ódios de estimação caem por terra, rendidos ao valor da luz do universo.
Naquela enfermaria, a visitar o meu tio doente, eu tinha duas tias. Uma, esposa do internado e uma outra, irmã do meu tio. Ambas cultivavam, uma pela outra, um ódio visceral há mais de vinte e cinco anos. Sem que nada o fizesse prever, ambas se abraçaram e, chorando copiosamente, pediram perdão pela falta de tantos anos.
No ruir daquele muro da indiferença, tive a certeza de que ainda há esperança para tantos ódios que atravessam a humanidade, apenas faltará o clique e, nesse momento, tal como ali, eles ruirão para bem deles e de todos nós.

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