sábado, 2 de junho de 2007

ERA UMA VEZ UMA BOTA E UM SAPATO

ERA UMA VEZ UMA BOTA E UM SAPATO…
Era uma paisagem verdejante. Ao fundo, como sentinela granítica, erguia-se a montanha vigilante. Durante todo o dia, o sol, como que enamorado deste paraíso terreno, passeando docemente de lado para lado, parecia com os seus raios, querer beijar este vale abençoado por Deus. Complementado pelo ruído das águas cristalinas do rio, que teimosamente corria por entre os lameiros, bem como o coaxar das rãs e o chilrear dos passarinhos, este vale era sem dúvida uma maravilha da terra.
A quebrar a modorra desta paz natural, ouvia-se ao longe o monólogo travado entre um miúdo e uma besta de carga meia enfezada que, resignada, seguia em frente contrariada pela lenga-lenga do rapaz, ora com ameaças veladas, ora elogios de alento, mais parecia um diálogo: “Anda mula!...Chega-te ao rego…maldita…queres que te chegue a roupa ao pêlo…queres??!...Isso mesmo…amiguinha!...Vês como me entendes?!...Para que tentas contrariar-me?...Gosto muito de ti…-somos amigos, não somos?...Claro que somos…e temos de lavrar a terra…senão….o meu velho dana-me…e tu não queres pois não?...Claro que não!”
Centenas de pássaros, como que inebriados pelo cheiro da terra fresca e à procura de uma minhoca suculenta, esvoaçavam em torno da besta e do rapaz. Apesar do traje andrajoso do petiz, quase a parecer um espantalho, os melros e os pintassilgos, sem receio, quase que iam comer aos seus pés. O puto olhava embevecido para estes pequenos seres e ao vê-los a seus pés, junto às suas velhas botas, já rotas em vários lados, perguntava a si próprio porque se aproximariam tanto das suas velhas botinas desgastadas pelo tempo?! Seria o cheiro a chulé, esse fedor insuportável que tão bem conhecia que os atraía? –“Se estivessem tão fartos como eu deste calçado miserável nem se aproximavam. Ainda bem que amanhã vou trabalhar para a cidade e estrear os meus primeiros sapatos novos! E vocês botas miseráveis vão ver o que vos vai acon-tecer…vou colocar-vos junto ao galinheiro! Nunca mais vos ponho os pés em cima! Estou farto deste lugar melancólico…quero é abalar!...Ai se me apanho na cidade…!”
Já o sol se tinha recolhido e a lua imposto a sua presença quando o Toino, após a labuta do dia, a penates, regressou a casa. Depois de recolher a mula no curral e de lhe deitar palha, foi arrumar os arreios e os apetrechos da lavoura. Acompanhado pelo roncar dos porcos, abriu a torneira para lavar as mãos. Enquanto as ensaboava e a água corria por entre os dedos, o puto olhava meio apático para os calos enrijecidos, fruto de tanto cuspir nas mãos para aguentar o cabo da enxada e os punhos do arado. Um sorriso desdenhoso passou-lhe pelos beiços meios gretados pelo suor e um pensamento de alegria levou-o a falar alto: “Amanhã vou p’ra cidade, o Toino, sem estas calças remendadas, sem estas horríveis botas velhas, de sapatinho “à fino” passa a ser o António”.
Antes de entrar para casa, para a ceia, descalçou as velhas botas, meias ensebadas, cheias de terra e, nem de propósito, ali estavam eles, a luz dos seus olhos: uns belos sapatos pretos para calçar no dia seguinte. Como que a espicaçar as velhas e obsoletas botas foi colocá-las lado-a-lado com os sapatos novinhos a estrear e entrou para a manduca, que a sua mãe, pobre velha, já de tanto gritar por ele, estava sem paciência para esperar mais.
Entretanto, durante a noite, cá fora, trava-se uma estranha batalha verbal, em conceitos de novo e velho, entre colegas de longas calçadas:
-que cheiro horrível...socorro…tirem-me daqui! -gritavam os sapatos novos, quase em desespero, por terem sido deixados ao lado das botas velhas.
-Ouve lá… ó amostra de calçado, quem pensam que são? Não sabem nada da vida! Não passam de uma embalagem bonita sem conteúdo, sem história de vida. Não se armem em espertos, nunca durarão tanto como nós, nem conseguirão percorrer metade dos caminhos que percorremos nestas veredas da vida! –Replicam enfurecidas as velhas botas abandonadas.
-óh…óh …(sorriem os sapatos com desdém)…o que interessa as veredas que atraves-
saram se estão velhas e caducas….não servem para nada!...Não vêem? Estão comple-
tamente decrépitas e esclerosadas… olhem para essas rugas!?…Dêem mas é lugar aos novos! Olhem para nós, plenos de força e brilho!
-Riam…riam à vontade!...Pensam que sabem tudo…não é? Vocês têm a força e o brilho de serem novos, mas não têm a experiência nem conhecem, tão bem como nós, cada milímetro da planta do pé do nosso dono! – contestam as velhas botas com alguma bonomia e compreensão, como que desculpando-os por serem novos e por isso serem irreflectidos.
Na manhã seguinte, ainda o sol espreitava envergonhado por entre os pinheiros, e já o Toino, inchado como um pepino, mais parecia um fidalgote de sapatos a brilhar, percorria a senda para apanhar a carreira que o haveria de levar à cidade. Mal chegou à paragem da camioneta, onde outras pessoas aguardavam, logo o rapaz puxa de uma flanela e ousadamente, quase em jeito de provocação, pôs-se a limpar os sapatos para que todos vissem que eram novos.
Passada uma semana, a trabalhar na cidade, o agora António, não parecia o mesmo, andava triste e acabrunhado. Contrariamente ao que idealizara, ninguém lhe ligava, até se riam dele, sobretudo quando carregava no “xim”, quando no trabalho perguntava: “O que dexeja o xenhor?”. E mais: quando passava por alguém na rua: “Que noxo xenhor nos dê muitos bons dias!”-O António esperava pela resposta…esperava e nada…até se convenceu que na cidade era tudo surdo. À hora do almoço, via estupefacto toda a gente a comer em pé, como… gado no curral, lá na aldeia. O barulho, na cidade era ensurdecedor: Carros, autocarros, gente a gritar:”abaixo o governo…acima o valor das reformas ( …) queremos emprego!”. E para acabar o pior de todos os martírios: Não aguentava os sapatos, tinha os pés todos em ferida. Da cidade estava farto, preferia ser provinciano a ter que aguentar isto e ser um burguês citadino.
Apenas tinha passado uma semana e para o (novamente) Toino parecera-lhe uma eterni-
dade. Aí estava ele, regressado como filho pródigo à sua aldeia, a calçar as velhas botas de cheiro a estrume. A um canto os outrora orgulhosos e preferidos sapatos eram agora o retrato do desânimo e desapontamento. As velhas botas olhavam para eles com comiseração, como se pretendessem dizer: O ser novo não é tudo, é preciso saber aliar a força, à experiência, à comodidade e à paz interior.


LUIS FERNANDES
(COIMBRA)

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